Cristina Guedes



Parafusos a mais



Diz o povo que, nem sempre é sábio, que lhe falta um parafuso no juizinho. Eu digo que ela tem a mais um, que quando Deus concebeu esta filha, se esqueceu dele para a cabeça de outros que não sentem a brisa de fim de tarde varrer as folhas do outono e nem admitem que a vida é esta passagem breve de momentos que vingam alguma coisa em nós.
Eduarda, nome fictício conta uma história bonita de início de vida. A mãe morreu-lhe cedo, tão cedo que nem aprendera sequer a palavra mãe e o pai é um desses homens rudes do campo, que andam de sachola ao ombro e amealham as notícias dobradas, debaixo do colchão, desconfiados que são dos bancos. E sempre que conta esta história fá-lo com a emoção de a reviver e de a contar pela primeiríssima vez. Havia um gato, malhado, desses iguais em todo o lado, que miava e se embelezava nos reflexos das janelas ou nos varandins. Esse gato, Miúca, igual a tantos outros, só da Emília se enamorava e só nesse colo se permitia dormir e ronronar. Emília, uma senhora boa, dos seus 72 anos feitos em favor da comunidade. Sem filhos e sem marido, acorria a todos e escusado será dizer, desde cães a pedintes, a todos dava guarida. Ou uma malga de sopa de feijão e tronchuda ou cinco mil-réis ou uma palavra de conforto. Era conhecida pela tia Emília da Buraca. Eduarda, porque lhe achava graça, porque via a mãe naquela mulher pequena e franzina, encostava-se muita vez ao portão da tia, acabando por sentar-se. A boa senhora cuidava de todos e era acarinhada por todos. Miúca dormia aos pés da cama. Quando a manhã chegava, Emília empurrava as mantas e lá tateava no chão as chinelas pra ir fazer o café e pôr o caldo a andar. Miúca esfregava-se nas suas pernas. E bebia a sua sombra toda o santo dia. Não, não era um gato igual aos outros, mais parecia um cão. As limalhas dele é que eram iguais, mas a alma desse gato, tinha-a a tia enfeitiçada. Eduarda chora quando se lembra da doença que lhe apareceu e a levou a entrevar na cama até morrer 3 meses depois. A vizinhança acorria, pra pôr o caldo a fazer, pra debulhar o milho, pra rezar o terço com ela depois da ceia. Os lençóis eram mudados e a pobre da tia erguida com muito carinho da sua cama. Pra logo a seguir ser envolvida pelo cheiro fresco dos lençóis mudados. Emília sabia estar perto a sua vez. E queria deixar tudo tratado. Ela que não tinha ninguém e que ninguém a tinha, que sabia assinar o seu nome e pouco mais, com um enxoval enorme. Mandou chamar o vigário e o Sr. Lopes, solicitador das suas amizades e lavrou que a casa seria para a sua filha não parida, Eduarda e o bocado da sua terra seria para fazer um belo jardim prás crianças, devendo o resto ser entregue a uma associação de cuidados a animais. Ainda rabiscou a sua assinatura e, arrancou-se lhe um suspiro a essa quietude, de quase 4 meses sem levantar. Mas não foi o último. Fez questão de dizer que queria ser enterrada no cemitério onde estavam os restos mortais dos seus pais e que queria ir dali de casa até ao cemitério a pé. Não queria carros.

- Mas tia, ainda é um pedaço a pé e talvez a tia não chegue lá acima, cansada que fica, diziam a brincar

Ela punha o sobrolho carrancudo e com cara de descrédito acrescentava: É só isso que eu peço meu rapaz. Só isso, que cansada ando eu ainda aqui e ainda su mulher pra fazer o monte sozinha e esperar que a morte chegue pra saltar! Só tenho pena do Miúca, que há-de ser dele? Eduarda, sei que tomas conta, mas onde vai ele a dormir, se não nas minhas mantas?

_ Minha tia, não se preocupe que o gato há-de ter acomodação.

Emília partiu em véspera de S. Martinho. O funeral saiu de sua casa de carro até chegar à estrada nacional. Lá chegado, o carro que levava a tia roncou e estacou. Ninguém o conseguiu de lá tirar. Só de reboque. O Teixeira da Póvoa ainda lá levou outro carro que teve o mesmo destino. Roncou e estacou.

- Arre, emendou o Manel da carteira grossa, que continua teimosa a tia, mesmo depois de morta.

Pois, a tia foi a pé como o combinado e pela lei da força. No rosto da maioria da vizinhança as bagadas corriam grossas pelos olhos fora, a confundirem-se com o tempo de chuva que já caía havia uns bons 5 dias.

Eduarda ainda de avental da tia posto, limpa com a beirada uma lágrima teimosa e conta:

-O pior ainda foi depois do funeral. Procurei o Miúca, eu e o povo da Buraca e nada. Fomos encontrá-lo no forno. Morto. Garantiu o veterinário que estava morto há uns dias. Suicídio?

Foi uma dor que se lhe deu, ele e a tia eram almas confinadas, não viviam senão na sombra do outro. A Eduarda que o povo cuida de parafuso a menos doou a casa aos protetores dos animais. Em Coreixas, em Peroselo, em Riba funda, em Moinho de Moinho até hoje não sabem que a doação foi feita pela Eduarda. A que tem um parafuso a mais.



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