Paulo José Miranda





Crónica Repetida

ISTAMBUL SEM METAFÍSICA


Em Istambul, não há metafísica. É uma cidade onde o que há, vê-se. Vê-se a riqueza, vê-se a pobreza, vêem-se os ricos, vêem-se os pobres. Vê-se quem acredita em Deus e vê-se quem não acredita em deus. E vê-se o mar, através das janelas grandes, abertas, de cortinas corridas para que haja luz entre os olhos e o mundo. Vê-se dos inúmeros terraços e esplanadas onde as pessoas se sentam para beber, falar e prestar culto ao verbo ver. E vê-se dos barcos, porque aquele que vê também se vê. Nada se esconde. Deixo a estação de barcos em Kadikoy, na Ásia, o barco passa junto às dezenas de garças negras, estáticas sobre as muralhas, a lembrar soldados numa missão de guarda a um qualquer importante posto. E, já em pleno mar de Mármara, com a Ásia do meu lado direito e a Europa do meu lado esquerdo, lembro as palavras do meu amigo Cevat, que deixei debruçado sobre uma tradução francesa do Poema Contínuo de Herberto Hélder: «A língua turca não permite existencialismos. Uma língua não consegue dizer o que não tem. Como bem sabes, nós não temos o verbo ter, e já reparaste que em turco não se consegue dizer “a língua turca não tem o verbo ter”? De facto, a língua turca é um estranho mundo interior. Nestes enormes barcos de transporte de passageiros, entre Kadikoy e Besiktas, pode-se fumar nas partes exteriores e beber chá e comer simit (um pequeno pão em forma de colar coberto de sementes de sésamo), o que faz com que inúmeras gaivotas se aproximem velozes em busca dessa guloseima. De todas as vezes, lembro sempre, apreensivo, o filme de Hitchcock. Ser-se escravo da memória é inevitável. E, por entre o fumo do tabaco e o cheiro do chá lá entramos no Bósforo, gaivotas e eu, cada qual com as suas dependências. Perguntam-me se tenho lume, melhor seria dizer: “o seu lume há?” Sorrio com a lembrança do meu amigo Cevat e lá lhe passo o isqueiro. “Muito obrigado”, recebo em troca. Atracamos em Besiktas, chegámos à Europa, em vinte minutos. Junto ao cais um outro amigo me espera, Ersan, com quem aprendo acerca das culturas Hitita, Bizantina e Otomana. A nossa conversa, obviamente, segue numa taberna, junto à estação dos barcos, por entre copos de raki, queijo e melão. «O nosso problema», diz, «é que não sabemos qual deverá ser a herança que devemos reivindicar como nossa. Somos descendentes dos hititas ou dos bizantinos? Dos otomanos ou da revolução levada a cabo por Ataturk? E, aceitar uma herança otomana, não será ir contra a República Turca? O que é que nós somos, diz-me?» Para mim, penso, a comida parece-me bastante otomana e mediterrânica, o modo de se beber e a organização do estado parece-me bizantina e a aspiração à CEE parece-me bastante kemaliana (Ataturk). Bebemos, comemos e saboreamos o silêncio que nasce em torno dos copos de raki. Nada dizemos, sentimo-nos esmagados pela imensidão de passado que atravessa a nossa tentativa de compreensão. Olhamos os barcos, as gaivotas, o Bósforo, as lindíssimas mulheres que entram e saem dos barcos, de mini-saias, de calças justíssimas aos corpos magros ou de vestidos largos e lenços na cabeça. O que nos acontece é que, perante o majestoso universo da história, acabamos por inadvertidamente deixar-nos engolir pela incompreensibilidade do presente. «Queres boleia para casa?», pergunta-me. Respondo-lhe que não, que fico mais um pouco com o silêncio do raki e que depois apanho um autocarro. Hoje a conta é minha, digo. Beijamo-nos e parte. Penso no túmulo hitita em Kaleykoy, no Mediterrâneo, entre Olimpus e Kas, meio afundado na água. Penso ainda no meu amigo João, com quem, ali, há três anos atrás saia à noite de barco para caçar javalis nas pequenas ilhas desse mar. Se não caçássemos, largávamos as redes e pescávamos. Certo era virmos carregados de morte para casa. Morte que cozinhávamos e comíamos. Era domar a morte para nos alimentarmos. Sentíamo-nos próximos do túmulo no meio do mar, próximos de um passado inexprimível. A caminho da paragem paro ainda num vendedor de programas de computador: «Tudo a 3 milhões.» Ou seja, tudo a 1,80 euros. E sinto uma satisfação quando ponho as notas na mão do rapaz, sinto estupidamente estar a prejudicar o capitalismo do mundo. Por vezes, os actos estúpidos ajudam mais a viver do que os actos inteligentes. O autocarro, a esta hora, claro, está cheio, o que me deixa mais próximo de mim. Nestes momentos tenho plena consciência de que não sou daqui. Esta fuga para dentro, a recusa em ver, em deixar que a minha vida seja os olhos, denuncia-me. É como um letreiro na testa: sou estrangeiro. Mas lá vou, Bósforo adiante, na direcção do Mar Negro e a pensar no que é que o Cevat pensará dos poemas de Herberto Hélder. Depois de passar Arnavutkoy, no outro lado do Bósforo, na Ásia, o pequeno palácio onde os sultões costumavam passar os verões está todo iluminado de uma luz branca e intensa que inunda o escuro das águas, tentando competir com a lua cheia, enorme, sempre tão enorme, tão perto de Istambul. Não consigo evitar e saio na próxima paragem. Volto para trás, para as tabernas de Arnavutkoy, os brancos da lua e do palácio trouxeram o branco do raki à memória. É a época do bonito, frito, acompanhado com rúcula. Uma dose, pois claro! Sim, senhor Irfan, traga raki, mas sem água. Apenas gelo. No mar, o peixe já teve água que chegasse. É uma piada sempre segura. A taverna não está cheia, por isso evita-se os incómodos ruídos das conversas. E também não está vazia, protegendo assim da melancolia exagerada que os brancos da lua, do palácio e do raki (logo que o gelo começa a diluir-se) produzem nos fígados mais sensíveis. E aqui há sempre o melhor dos rakis, o de 50% de álcool, com a fotografia dos poetas turcos no rótulo. Assim, lá tenho eu outra vez, à minha frente, sobre a mesa, o meu amigo Cevat. Isto sim, é que é uma bela homenagem à poesia: pôr os poetas nas garrafas do que é bom! Com um sorriso e o prato de bonito na mão, o senhor Irfan diz-me que em breve começa a época das adoradas anchovas. Claro que sei! Estas coisas, sei sempre! Em breve lá vão começar as peregrinações às tabernas, em busca dessa dádiva do Mar Negro. Continuo o raki muito para lá do peixe. E, já sem clientes, o senhor Irfan, como de costume, senta-se à minha mesa. Pega em dois copos, vaza raki com água e gelo num deles e no outro põe só água. É um clássico, este senhor Irfan! Não vai demorar muito para começar a falar mal dos políticos e do treinador do Galatasaray (clube de que é adepto e que este ano vai de mal a pior). Concordo e brindo a isso. Os políticos são os políticos e o futebol é o futebol! As tautologias também são sempre seguras, aqui, na taberna de Arnavutkoy. Está visto que temos de vazar a garrafa, acabo por dizer. Ri-se, concorda e chama-me (como sempre a esta hora) «português maluco». Chamo-lhe maluco do Mar Negro e enchemos de novo os copos. É muito tarde quando regresso a casa. Apanho um táxi. Para Baltalimani, por favor. Lá vou outra vez a olhar para dentro, como um estrangeiro. E agora não é pelo excesso de pessoas, mas pelo excesso de bebida. Em casa, ainda me sento na varanda a olhar o Bósforo. Os cargueiros e os petroleiros passam lá em baixo como fantasmas. Julgo mesmo que, de tão escuro que são, só os vemos com a memória da luz do dia. Antes de me deitar, oiço ainda a voz do Cevat no atendedor de chamadas: «Gosto imenso do poeta que me deixaste aqui em casa. Muito, muito obrigado.» De nada, Cevat, ainda bem. Amanhã temos mais Istambul, sem metafísica.

Paulo José Miranda,
Istambul, Outubro de 2003

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