Espírito de Missão



Não. Não e não. Cansada, abeiro-me de ti e quero dizer-te que tenho outros planos, que medraram outros tantos destinos em mim a que preciso obedecer. Mas olho-te de soslaio e sei que não me acreditas. E que nunca me entenderias. Que não há outra forma de o fazer, a não ser mostrar o não. E um não que pretende ser negação coerente. Pena que não lhe possas ver a coerência. Debaixo da casca de cebola, de mais uma camada de mim, não lhe chegarias a ver coerência e nem lágrimas. É efectivamente hora de exercê-lo, torná-lo gordo e presente em mim. Chorei-te muito. Que o perdão dói até se estabelecer. Chorei-te mais do que te ri ou sorri contigo e, desabei finalmente em mim, desaguando a dor, operando directamente na ferida exposta que só eu adiava a cura. Que só eu retirava a crosta, que só eu sabia ter. Estas feridas internas têm cura, se temos consciência presente delas na altura em que surgem. Se a consciência for leviana - como a minha foi - então, empurramos com a barriga até ao extremo do tempo, até ao ponto em que achamos poder transformá-la em cicatriz ou lembrança. E a razão, a desculpa, a infinidade de atalhos e desvios consegue dar a ilusão de anestesia, de aniquilar a memória dela. Sei agora que a tenho, que é parte de mim e que obedece a directrizes antigas do eu. Chega e basta. Não e não. Não apenas hoje mas não nunca mais. Não de faz-de-conta que vou curar, mas não de não haver caminho a não ser este. Não vou ludibriar coordenadas, nem inventar girassóis para assistir ao meu fúnebre e despropositado sim. Já não há sim em mim que se converta em nós. Apenas eu, no silêncio e ruído em volta, apenas eu no teclado da vida, resto-me eu. Com sustenidos e bemóis, com acordes de sétima e sem a tua diapasão. E deixa-me abusar da negação, mas é um não de não-querer-mais. Enquanto te olho, espero e desejo que nesse semblante de inquirição consigas ler o monólogo que queria fosse diálogo aberto, mas reservo-me à tua intolerância, ao teu desvario e à revolta que teimas em trazer para temperar a minha ferida. Olho-te e ainda te reconheço mas já não te sinto mais. Não como parte do meu caminho... vislumbro já bem estar e renovação em ti, depois do meu "não" agir em mim. Ou sobre nós. E usas dramatismo e loucura para me garantires que a louca sou eu. Não. Será assim que me vais ver. Relutância nenhuma. Aceitação e mais nada. Carrego na mala todo o tipo de memórias. Somos também delas feitos, e levo algumas escolhidas a dedo para que o foco aumente. Não. Não preciso e não quero os teus caminhos. Quero-me antes a mim, sentir que levito e não que tudo  o mais é um peso. Não quero as pedras mas aprendo a usá-las para me servirem de ajuda no caminho, as mesmas que recebi no caminho a ti? Desconheço. A montanha que eu temia deixou de estar lá a não ser para me extasiar. E delicio-me com a decisão. Estou só. Ao abrigo desta entidade que me deixa prenhe de outros voos, de vertigens de expansão. Não me entenderias, a formatação do que desejamos e manifestamos neste tempo que deixo para trás impede-te de poderes ver que há muito se começou a visualizar essa necessidade do não. Não ao nós mas sobretudo não aos outros. A afirmativa desenvolve-se em mim há décadas. Como te disse, há mais para além de nós. Há nós - não de tu e eu -  no sentido mais amplo da questão, o nós multidiverso, um nós abrangente de vida e de caminhos novos. Creio que a meta está próxima, a da metafísica. E os chocolates dispenso. A poesia não. Em missão, galgo as laterais da montanha e vou aspirando a cada novo passo, as fragâncias de rosmaninho e malmequeres. E de terra, enquanto miro o céu e atravesso a barreira temporal dos diálogos e já estou lá, no depois e a cebola vai largando as suas camadas sem medo de exposição, a cobra liberta-se da pele, para fazer respirar uma nova derme. O medo que me impelia abandonou-me no "não" que nos dei. Substituo vocábulos e experimento fonemas e vou colorindo a aventura e a coragem de fechar portas e abrir janelas, de sair da zona de conforto e socorrer os meus eus de outras latitudes. Não mais me pertenço ou se quiseres, sou toda minha, um céu que me ganha e uma terra que me liberta. Deixo votos de muito amor e que possas exercer o perdão a ti e aos outros. A mim, também, porque não? O amor é assim. Opera sempre milagres. E o milagre de nos termos encontrado e conhecido, partilhado vidas e desvarios trouxe-nos agora à finitude de outros caminhos... Vou agora à minha missão e deixo-te na tua.

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