Portal 12/12 na Foz do Brandão
Hoje, depois de todas as rotinas respeitadas e cumpridas, da Clara se desculpar pela entrada atrasada e tempestiva, arrastando atrás dela o guarda-chuva, espalhando as gotículas pelo chão, quase correndo para a cozinha, como se assim pudesse impedir a tempestade de fora, fomos juntas acordar a senhora Eva, minha mãe, abrindo devagar e pouco a persiana, atirando um bom dia, mas mentindo, que o dia está tudo menos bom, lhe disse que a sua cuidadora chegara. Separei um pijama quente, um par de meias, para os seus cuidados de higiene e depois das instruções de pequeno-almoço e almoço, atirei um até logo, que o apanhado de necessidades, já tinha rasurado na pequena agenda e atirado no saco. E vi-me livre, assim que cheguei à rua, como todas as pessoas que vivem alforriadas, há muito, diante da chuva. Não pensei duas vezes, fui ver onde o rio se une ao mar, outra vez. Um troço pequeno de estrada, junto ao passeio dos Alegres trancado, com grades de ferro grosso, como as usadas nas arruadas do dia anterior, que foi o dia da Greve Geral, mas que é política e só serve para me amargurar o dia, já de si cinzento. Acalmei, olhando as ondas na rebentação dos limites de cimento, enquanto colocava uma moeda no parquímetro e me dirigia ao café no Jardim. Sempre que lá vou, encontro-me com o Raúl Brandão. Bem sei que não é da minha formação, que partiu antes de eu aterrar cá, mas quando o vejo, ao seu busto e às esculturas dos pescadores e dos filhos deles, das suas esposas, é como se o visse a ele, pequeno e rufião, correndo pela calçada da Foz, rente ao rio, aqui mesmo, onde este se abraça ao mar. E os centenários passam e nós sabemos que sim, mas nenhum de nós vê, usualmente, passar por nós centenários e feitos, o que vê, quando muito, são décadas, como escadas que se vão perdendo de vista, na medida certa em que saltamos do último degrau, o passado recente, já pisando, nem sabemos bem o quê e às vezes, como, o presente que se vai desembrulhando, à medida que calcamos a sua imprevisibilidade. Julgo olhar o futuro, enquanto me assombro com as obras do passado. Não vou mentir, dizendo que ao olhar a minha curta liberdade, ao sentir o vento no rosto ali mesmo, na junta entre o rio e o mar, me não lembrei de ti. Seria mais uma filha de Gepetto, uma Pinóquia indecente, a rimar com a sociedade vigente, o que me apaixonas és tu, que és o mar e o rio em mim, o dorso e a inteligência espacial, o corpo e o Espírito, a claridade do dia e a sua consumação quando chega a lua. Porque me impediste de te dedicar os meus dias e porque quero é apaixonar-me por quem sou, digo, emendo, refaço e recomendo a natureza em doses absolutas e homeopáticas. Deus, na sua imensa sabedoria, nos deu a beleza e o pranto e ao fazer uma foz, onde se abraçam, solene e apaixonadamente, rio e mar, nos coubesse o espanto. E a minha torcida de que sou todo e parte nesta claque, de eloquente admiração pelos deuses que em nós há, é que nos fez criadores e criação, para não sermos capazes de controlar coisa nenhuma, nem aquela onda que galga, furibunda, os limites mortais da vedação, nem com as nossas tecnologias xispêtêó, conseguirmos amarrar as nuvens ou fazer delas novelos. Fez rio, mar e foz. Um céu imenso sobre nós. E todas as árvores e a sua seiva, para que não nos esquecêssemos que está sempre à nossa beira, mesmo quando nos julgamos sós. Isso apaixona-me sobremaneira. Olho os homens pisarem com uma máquina de atarraxar ao chão, uma peça que me parece ser bronze e que, outra vez, me parece ser para prender algo ao chão trepidante e buliçoso, cheio de elétricos que continuam a percorrer as linhas que vão até à Batalha e voltam até para lá de Matosinhos. Chamo-lhe junta. Pois, para que essa junta ficasse presa ao piso, foram necessários quatro homens e uma senhora, todos com os pés e os olhos na junta e os braços na dita cuja máquina que, por certo, tem um nome utilitário, mas que desconheço. Os turistas e os sprinters, os casais de namorados e as trotinetes, o jardim de infância que alberga idosos e a pista de críquete do outro lado, entrevejo a fonte do Cágado do Nasoni e sigo, já com os tenis todos cagados de folhas amarelas e terra, até ao café. Peço-o normal, oiço os comentários ditos pelos clientes, alguns deles, e faço uma sopa de letras na transversal, enquanto me encaminho para o exterior, abrigando-me no chapéu que no Verão é para resguardar do Sol e no Inverno tem o efeito de guardar da chuva, e vejo o fumo do cigarro subir em espiral, por entre as árvores centenárias e a minha estupidez de meio século somente. Quem sabe, se eu pudesse ver passar centenários, me tornasse menos estúpida, de forma a não consumir nicotina nem cafeína, que são formas de conservar e dar algum lustro ao ócio da pouca saúde que tenho e teimo em continuar a não preservar. Largo o cigarro no cinzeiro na lata, abro o guarda-chuva, tiro meia dúzia de retratos às árvores, às fontes e às gentes de costas e sigo para o percurso inicial até ao bote. Não entro. Contínuo até ao paredão, e cismo que o realismo de Brandão, o seu humanismo devia ter-nos servido de cama ou de esteio para, ao invés de sermos uma sociedade de politicamente corretos, de abusadamente hipócritas e de tremendamente irascíveis, nos tornássemos demasiadamente humanos, húmus do céu, cheios de asas de fé e de empatia aos que se mantêm marginalizados! Mas não, que isso não importa nada, que nos importa a vida torta dos outros, se a nossa se endireita à custa dessa tortura de sermos incorretos, como se fôssemos tiranos, e inventássemos a receita perfeita para sermos deserdados, deseudados, desalmados, por não sermos humanos. Fui ao Aushan de Campanhã, vi de longe os comboios, que adoro ouvi-los rugir, arrancando os destinos pelas escadas de todos os dias, entrei com o saco vazio no dito minipreço alterado e vim carregada até ao bote. Depois entrei no mesmo e fui para a minha torre de Menagem, onde me acorrento a mim mesma, à falta de alternativas para a prisão onde me querem devota. E chegada aqui, vejo as fotos do telele, visito o site cultural O Citador e trago do Raúl a gota de realismo lírico, excerto do Húmus dele, que foi ele que escreveu, mas que deixou para usufruto de todos.


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