Recauchutagem?






 Penas novas, então.

Às vezes (ultimamente, mais frequente) sinto-me estranha no meio de estranhos. Sei que sou eu, mas, como as cobras, a mudar a pele, mais que a pele, a alma. E foi num desses momentos que me fui inspirar pra vos escrever de Caminha. Verborreias de alma quieta, garanto-vos.

Ao todo, conto nesta enseada ou baía familiar 30 embarcações. Todas aquietadas pela maré poisada no cair do sol. Assim como tudo, de resto. Do outro lado, Santa Tecla, Espanha, tão perto que o ferry me levaria lá em cinco minutos e tão longe que seria incapaz de me erguer deste banco recentemente colocado junto á baía para o fazer. O Ínsua insinua-se á esquerda com alguns movimentos quase inaudíveis de pratos, talheres e vozes humanas. Algum agitar de gentes no sentido do Corsário e do Barracuda. De costas erguidas e olhar atento, eu.
O prazer de ver o sol deitar no fundo da tela natural é meu e ninguém mo pode tirar. Já não chovo de descrédito, talvez porque me encontre desacreditada. Nem cismo na minha quietude, porque é nela que me ancoro pra me renovar. Posso dizer que é ela que me alicerça para o restante do processo. Este processo da desilusão que faz parte da vida, como perder e ganhar, como rir e chorar, como cair e erguer de novo. Do meu lado esquerdo, oscilam tão ao de leve duas lanchas pequenas que podia jurar que são os meus olhos que as fazem oscilar de tanto as mirar. Ilusões destas nunca magoam ninguém, porventura apenas a iris do olho e é temporal e localizado, tratado e remissivo. Sem sequelas. Queria mais destas. Estou aqui, entre o rio e o mar, onde eles se abraçam e se chocam nas marés cheias e nos vazamentos e lembro-me dos cães e dos gatos lá longe nos Mochos. Quem sabe entre o dormitar, entre o sacudir de moscas chatas e a espera do jantar. Entre lambidelas e ronronadelas e miares demorados e mendiguentos pra uma rabada de peixe grelhado. As lembranças das coisas são saudades, mas as saudades são mais do que as coisas, do que o lembrar delas, são os apegos, o que sentimos de falta, de ausência, de tardio ou demorado, e não cabem saudades neste pôr-do-sol rico, nesta paz emprestada. Só ela me faz demorar a respiração, não ter pressa de partir, nem vontade de chegar. Que me importam as abóboras meninas ou as cabaças a amarelarem, os figos a multiplicarem-se ou as laranjas a vergarem braçadas? Que me importam os grilos e as gralhas, se deste miradoiro seminatural, posso cheirar o mar olhando o rio e ver as gaivotas mordiscar as águas na ilusão de um cardume de peixes doces e ainda assim, saber que a ordem natural das coisas obriga os humanos ao regadio, á manutenção dos seres vivos lá nesse longe que retardo e recuso a vivência?!
Recolho impressões em rostos deslumbrados como o meu, talvez mais deslumbrados que o meu, dos laranjas e rosas desmaiados, do fogo, do rastro de incêndio no céu que se prepara para o breu estelar. Também eu sou quase uma estrela de cauda fugidia que se prepara para um lugar na horizontal. O meu querido saco de cama almofadado.
Os campistas, as bicicletas ocasionais, os risos intimistas e as gargalhadas á volta dos grelhados, tudo se conjuga e asfixia - thank god - outros sentimentos que recuso ampliar. E eu agnosticamente agradeço a Gaia, ao universo esta paz cheia de remendos e intervalos que me habituei a saborear em breves tragos, tal como faço com o cigarro que demoro entre os dedos e os anéis de fumo que deixo fugir para o ar que vós respirais! São prazeres tão pequenos, tão imensamente pequenos e raros. Hei-de lembrar-me disso quando já longe deste desmaiar do dia, quando longe do quebrar das ondas no mar, do ritmo das águas e do vaivém de gente disposta a esquecer um ano inteiro nos dias sem relógio, sem marcadores e sem agenda. Passei o dia em deambulações pelo centro da vila, apinhada de feirantes, de turistas e curiosos. Pela zona histórica e pelas remodelações que desconhecia por ali. Descobri combinações de artigos em lojas que agradam gregos e troianos e até quem metesse elefantes em lojas de cristais. E de lá trouxe um mocho delicioso (e carote) made in Portugal, articulado em pau preto e liga fina de estanho. Alto, esguio e atento. O tédio faz-me reparar em pormenores sem qualquer importância.
-Olha, foi mesmo ali que no ano passado conheci a dona do Micado, um gato enorme e ternurento que fotografei até me cansar. Um gato que não simpatizava com estranhos e menos com máquinas de estranhos e que a dona me confidenciou que eu devia ser pessoa boa. Que o gato dela reconhecia poucas almas dessas. Boa. O Emídio também diz que uso a máscara de boa rapariga. Seja lá o que isso quer dizer. Não uso de cinismos para expressar as reticências desta apreciação dele á minha pessoa. É uma pessoa que entende de sombras e eu de coisa nenhuma. O dia extingue-se á medida que avançam os meus pensamentos desalinhados. Comi uma francesinha numa tasca no interior de Caminha de uma angolana pura. De uma maneira própria, misturou a "francesinha" portuguesa com ingredientes, texturas e sabores angolanos, muito á Mia Couto saiu uma coisa entre o surpreendentemente estranho e o estranhamente saboroso. Chamo-lhe françolana e gostei da abertura e clareza de postura da senhora. Hei-de lá voltar, repito-me, quem sabe um dia, não tão cedo. No telemóvel um SMS do meu filho, a meros 500 metros de mim: -Vais ao Manel, mamã?
Encurtei a resposta e a intenção. -Mamã não vai Manel. Precisa de dormir.
Ele encurtou mais ainda a minha resposta mendigada: Ok, beijinho.

Tantos beijinhos lhe espalhava pelo rosto se pudesse sorrir ao invés desta apatia que nem se deixa perturbar pela beleza natural de um rio parado. Paz emprestada, já sei. Paz mendigada a pulso, olho no olho, silêncio cortando o grito. Pergunta sem resposta. Silêncio responde. E se eu deixasse que os meus passos me conduzissem ao abismo das ondas que picam as embarcações e que se fazem ao mar, mais pela noite dentro, se me deixasse levar até onde a guarda costeira envia alarmes, se ouvisse rebater sinais e espumas contra os meus pés e olhos, se me deixasse levar, perderia a paz que encontrei aqui. Quietamente me mantenho, nem aos órgãos vitais dou permissão de solavancos e adrenalina. Quieta. Parada. Á margem do rio, nas margens de mim, braçadas, pernadas, destroços de créditos e esperanças que fluem em direção á preia mar. Onde se desintegrarão na violência das águas que não admitem e rejeitam próteses. Para se transformarem um dia em memórias ou nem isso. Um dia, eu que sonhei ser feliz, fui sê-lo. E não admiti obstáculos nem sombras deles.

E somos muitas vezes surpreendidos pelo innerself que nos mostra uma nova forma de vivermos momentos novos ou deja vus, estratégias nunca ousadas ou esquecidas e voltamos a saber qual o lugar a ocupar dentro do turbilhão que nos arrastou inteiros e nos restaurou estilhaços. Querem saber o que eu acho, agora, aqui defronte ao rio, agorinha mesmo?
Que o rio correrá sempre para o mar, mate ou alimente pessoas e peixes, que o devir é ocorrência e não escolha e, que, melhor que nos entregarmos á autocomiseração, é nos dedicarmos ao que queremos, tendo sempre em mente que é inevitável lutar contra os
riscos, pois são inerentes a todo o processo.
A cortina do unknown favorece-nos, mesmo quando desacreditados...é isso a e valsa lenta do piar das gaivotas rasando embarcações que me renova a perspetiva dos dias que hão-de vir, no devir onde somos mais que espectadores!

Comentários

Nina Owls disse…
obrgd Jorge...já bebi uma cerveja (light) do teu blog

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