Manuel Bandeira
Post para melhor entender a poesia, cortesia Manuel Bandeira, transcrição minha.
Poesia e Verso
Um dia, ao começar a escrever um livro didáctico sobre literatura, tive que dar uma definição de poesia e embatuquei. Eu, que desde os dez anos de idade faço versos; eu, que tantas vezes sentira a poesia a passar em mim como uma corrente eléctrica e afluir aos meus olhos sob a forma de misteriosas lágrimas de alegria: não soube no momento forjar já não digo uma definição racional dessas que, segundo a regra da lógica, devem convir a todo o definido e só ao definido, mas uma definição puramente empírica, artística, literária. No aperto me socorri de Schiller, em quem o crítico era tão grande quanto o poeta, e disse com ele:"Poesia é a força que actua de maneira divina e inapreendida, além e acima da consciência."
Sabeis o que é actuar de maneira divina? Confesso lisamente que não sei. Mas conheço da poesia, por experiência própria, essa maneira inapreendida de acção: nunca pude explicar, em muitos casos, a emoção que me assaltava ao ouvir ou ao ler certos versos, certas combinações de palavras. A propósito, vou contar-vos uma anedota. Havia na avenida Marechal Floriano um hotel que se chamava hotel Península Fernandes. Toda a vez que eu passava por ali e via na tabuleta aquele nome hotel Península Fernandes, sentia não sei que pequenino alvoroço - alvoroço em suma de qualidade poética. E ficava intrigadíssimo. Por que aquele hotel se chamava Península Fernandes? Uma tarde meu primo António Bandeira, igualmente invocado pelo estranho nome, não se conteve, subiu as escadas e foi falar ao proprietário, que era um português terra-a-terra e sem nenhuma fumaça de literatura.
-O senhor me desculpe a curiosidade, mas porque é que o seu hotel se chama Península Fernandes?
- Muito simples - respondeu o homem - F'ernandes porque é o meu nome e P'nínsula porque é bonito!
O nome estava realmente explicado, mas a emoção poética não: actuava de maneira inapreendida.
É assim que muitos factos de rua actuam sobre a nossa sensibilidade. Dois automóveis colidem, ou uma senhora desmaia, ou um homem é assassinado, ou uma estrangeira em trânsito para Buenos Aires desembarca na Praça Mauá em trajes mais que menores: forma-se logo um ajuntamento e os que vão chegando e aderindo ao grupo e os que olham de longe não sabem ainda o que se passou. Paira no ar um certo tumulto emocional, criando uma como que atmosfera de poesia. Pois bem, o poeta suscita a mesma coisa, só que mediante apenas uma colisão de palavras.
Quando Schiller disse que a poesia é uma força que actua além e acima da consciência, parece que queria referir-se àquele mundo de subconsciente que todos trazemos dentro de nós. A poesia seria então a ponte entre o subconsciente do poeta e o subconsciente do leitor. Se adoptei no meu livro a definição de Schiller, foi porque ela esclarece, a meu ver, a poesia menos acessível, a que não ocorre no foco da consciência. Mas é evidente que a poesia pode nascer também em pleno foco da consciência, e portanto actuar de maneira claramente apreensível. Em meu poema "Palinódia", a estrofe central é perfeitamente inteligível. Mas eu mesmo não saberia explicar as estrofes inicial e final. Elas pertencem a um poema que fiz durante um sonho. Ao despertar tentei recompô-lo e não me foi possível fazê-lo senão parcialmente. A estrofe inteligível resultou de um trabalho mental em pleno foco de consciência; as outras duas foram elaboradas de maneira inapreendida na franja da consciência. Tenho a minha interpretação delas, mas não vo-la comunicarei: é segredo profissional.
Nas mesmas condições de "Palidónia" está o meu soneto "O lutador", também elaborado em sonho.
Nele a intervenção posterior em estado de vigília foi mínima. O soneto, com título e tudo, é fielmente o do sonho. Tive de o interpretar como se eu fosse um estranho a mim mesmo, como qualquer um de vós o poderia interpretar segundo as sugestões do meu subconsciente à minha consciência, mensagem muito vagamente apreendida por esta e de novo e de novo refrangida para o seu mundo original.
Assentado que a poesia pode actuar dentro ou fora, acima ou abaixo da consciência, comecei a registar todas as definições de poesia que fui encontrando ao acaso das minhas leituras. Organizei assim uma pequena antologia do assunto. são numerosíssimas e o poeta Carlos Drummond de Andrade depois de mim ainda assinalou numa crónica uma porção delas que eu não conhecia. Mas é possível reduzi-las a uma meia dúzia de tipos, que lhes facilitam o exame. Se não, vejamos:
Certos autores definem a poesia como ficção: "Poeta", escreveu Jonson, grande dramaturgo inglês, contemporâneo de Shakespeare e um dos homens mais cultos do seu tempo, "é, não aquele que escreve com métrica, mas o que finge e forma uma fábula, pois fábula e ficção são, por assim dizer, a forma e a alma de toda a obra poética ou poema." É o mesmo conceito de dois outros grandíssimos poetas ingleses seiscentistas: Donne, que disse "a poesia é como uma simili-Criação e faz coisas que não existem, como se existissem", e Dryden, para quem a "ficção é a essência da poesia".
Pergunto eu agora: não haverá poesia quando realizo em palavras uma transposição da realidade, sem inventar nada, sem "fingir" nada? Como neste poema:
O arranha-céu sobe no ar puro que foi lavado pela chuva
E desce reflectido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.
Poema que é uma simples reprodução por imitação, para empregar as velhas palavras de Aristóteles.
Já Dante acrescenta ao elemento ficção um novo elemento - a música, e diz: "Poesia é ficção retórica posta em música". O elemento música vai aparecer em numerosas outras definições. "À poesia ", escreveu Carlyle, chamaremos pensamento musical". E Ruskin, moralista, ensina que ela é " a apresentação", em forma musical, à imaginação, de nobres fundamentos às nobres emoções".
Não se pode negar que a música seja um elemento da velha poesia, da poesia ao tempo em que ela foi assim definida. Hoje sabemos que pode haver poesia sem música, e poesia da melhor. Sem música, bem entendido, no sentido de não procurar o poeta fazer o verso cantar no poema.
Outro poeta, e que poeta! o grande romântico Coleridge, definiu o poema "aquela espécie de composição que se opõe às obras de ciência por visar como objecto imediato o prazer e não a verdade." O objecto imediato, porque em profundidade ele é "a identidade de todos os outros conhecimentos, a flor e o perfume de todo o humano conhecimento".
E aqui entramos no conceito de poesia-conhecimento. Muitos são os que o afirmam. Para Lautréamont, ela anuncia as relações existentes entre os primeiros princípios e as verdades secundárias da vida. Novalis já dissera que "a poesia é o real absoluto". E o moderno Maritain precisa: "Poesia é o conhecimento, incomparavelmente: conhecimento-experiência, conhecimento-emoção, conhecimento existencial. Ela é o fruto do contacto do espírito com a realidade em si mesma inefável e com a sua fonte, que acreditamos ser Deus".
O epíteto "inefável" leva-nos a um grupo de definições, onde culmina o conceito na definição de Edwin Arlington Robinson, grande poeta norte-americano.: "Poesia é a linguagem que nos diz, em virtude duma reacção mais ou menos emocional, alguma coisa que não pode ser dita".
Devo esclarecer que todas as essas definições e muitas outras que coligi, aparecem em contexto onde se procura apreender a essência do fenómeno poético: não foram apresentadas isoladamente como definição no sentido lógico da palavra, e de isolá-las como fiz, resulta uma certa mutilação do pensamento dos seus autores. Nada obstante, cada uma contém uma parcela de verdade, ilumina um ângulo do problema, que é talvez insolúvel. Todas me parecem falar em termos de poesia, com o seu vago, o seu mistério. Nenhuma se refere ao que é a matéria prima da poesia na arte literária - as palavras, e tanto se podem aplicar à arte literária, como à música e às artes plásticas. Paul Valéry menciona-as numa definição que é um pequenino poema: "Poesia é a tentativa de representar ou de restituir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que os gestos, as lágrimas, as carícias, os beijos, os suspiros procuram obscuramente exprimir." E André Gide foi desenterrar de um prefácio esquecido de Banville esta definição, que espanta tenha saído da cabeça de um daqueles mestres que Thibaudet chamou os Tetrarcas de Parnaso: "Poesia ...essa magia que consiste em despertar sensações por meio de uma combinação de sons...esse sortilégio graças ao qual ideias nos são necessariamente comunicadas, de uma maneira certa, por meio de palavras que todavia não as exprimem."
Comentando largamente a definição de Banville, começa Gide pelos vocábulos "magia" e "sortilégio" (sorcellerie):
Valéry, de maneira voluntariamente ambígua, dirá charme...
O verdadeiro poeta é um mago. Não se trata tanto pra ele de ser comovido, mas de induzir o leitor a comover-se: "por meio de uma combinação de sons", que são palavras. Que a significação dessas palavras importa, não será preciso dizer; não, porém, independentemente da sonoridade delas. O verso delicioso de Racine, tão frequentemente citado como exemplo de encantação harmoniosa: Vous mourûtes au bord où vous fûtes laissée. Mudai as palavras, dizei: Vous êtes morte sur le rivage où Théseé vous avait abandonée. O significado continua o mesmo, mas o "encanto" desaparece.
Mallarmé tinha razão: "Não é com ideias que se fazem versos: é com palavras." Não que o sentido delas não importe. Importa, mas não como advertiu Gide, independentemente da sonoridade delas. Naturalmente o sentimento está subentendido, é ele que faz achar as combinações de palavras suscitadoras da emoção poética.
A grande dificuldade, porém, está em que se uns se comovem diante de certos versos e outros não. Há pessoas que acham intensa poesia nos versos de Murilo Mendes, outras não a acham nenhuma, encontram-na é nos sonetos de Emílio de Meneses, nos quais os admiradores de Murilo não vêem sequer a sombra dela. E há as que não suportam nem um nem outro: gostam é da suave música de Olegário Mariano. Afinal em poesia tudo é relativo: a poesia não existe em si: será uma relação entre o mundo interior do poeta, com a sua sensibilidade, a sua cultura, as suas vivências, e o mundo interior daquele que o lê.
Se passarmos da definição da poesia para a definição de verso, as dificuldades do verso, as dificuldades diminuem, mas não desaparecem. Abri um tratado de versificação qualquer, o de Bilac e Guimarães Passos, por exemplo, e ali vereis definido o verso como ajuntamento de palavras, ou ainda uma só palavra, com pausas obrigadas e determinado número de sílabas, que redundam em música". Em nota traduzem os dois autores o francês Quitard:
A etimologia latina das palavras "prosa" e "verso" claramente indica a diferença essencial da sua significação: "Prosa" vem do adjectivo latino prosa (subentendendo-se o substantivo oratio, discurso, oração) - oratio prosa, discurso contínuo, seguido, e respeitando a ordem gramatical directa; "Verso" é derivado de versus, do verbo vertere, tornar ou voltar -, porque, uma vez esgotado um certo número de sílabas, a oração se interrompe e volta de novo ao ponto de partida, a fim de começar outra evolução silábica.
A definição de Bilac e Guimarães Passos, que é mais ou menos a de todos os outros tratadistas, podia servir para a nossa língua e mais algumas outras mas só até o advento do verso livre. Que definição se pode dar do verso, de modo que ela se aplique a qualquer idioma, vivo ou morto, e em qualquer tempo? Pedro Henriques-Ureña, o grande mestre dominicano, há pouco falecido, tentou, a meu ver com êxito, essa definição mínima. Poesia, poesia no sentido formal, ensinou ele, é linguagem dividida em unidades rítmicas, prosa é linguagem continuada. Sem dúvida, na linguagem continuada da prosa há parágrafos. Mas o corte da prosa em parágrafos atende tão-somente à necessidade de ordenação das ideias. O verso é a unidade rítmica do poema. Ritmo, em sua fórmula elementar, é a repetição. O verso, em sua essência, é unidade rítmica porque se repete e forma séries. Para formar séries podem as unidades ser semelhantes ou dessemelhantes. Podem ser unidades flutuantes. Mas é necessário que cada verso seja uma como que entidade, ou como disse Valéry "uma palavra total, vasta. nativa, perfeita, nova e estranha à língua".
O que diferencia os diversos tipos de versificação através de todos os idiomas e de todos os tempos são os expedientes de que se valeram os poetas para pôr em maior evidência o ritmo. Expedientes como: valores de sílabas (quantidade), acentos de intensidade bem marcados, regulação dos tons ou diferenças de altura musical entre as sílabas, número fixo de sílabas, rima, aliteração, encadeamento, paralelismo, acróstico. Na versificação portuguesa os apoios rítmicos de que temos exemplos são o número fixo de sílabas, a cesura, a rima, a aliteração, o encadeamento, o paralelismo e o acróstico. Talvez muitos dos meus leitores não estejam a par do significado de todas essas palavras. Do encadeamento, do paralelismo, por exemplo. O encadeamento consiste em repetir de verso a verso, ou de estrofe a estrofe, fonemas, palavras e frases. Foi com o paralelismo, muito usado na poesia hebraica, e dele se serve quase infalivelmente em seus poemas o nosso algo bíblico Augusto Frederico Schmidt:
Porque chorar se o céu está róseo,
Se as flores estão nas trepadeiras balançando, ao sopro leve do vento,
Porque chorar se há felicidade nos caminhos,
Se há sinos batendo nas aldeias de Portugal?
Nesse poema de Canto da noite, o poeta só abandona a interrogação "porque chorar" para passar à locução encadeadora "feliz como":
Porque chorar - meu Deus, se estou feliz e pobre,
Feliz como os pobres desconhecidos dos hospitais,
Feliz como os cegos para quem a luz é mais bela do que a luz,
Feliz como .... etc
O paralelismo é a repetição ideológica. Encadeamento e paralelismo tiveram a sua fase de ouro em língua portuguesa no tempo dos cancioneiros. O que chamaram "cossante" era uma cantiga paralelística e encadeada. Assim esta "barcarola" de Martim Codax:
Ondas do mar de Vigo,
Se vistes meu amigo!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
Se vistes meu amado!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
O por que eu suspiro!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado,
O por que ei gran cuidado!
E ai, Deus, se verrá cedo!
Essa cantiga é paralelística porque as estrofes pares repetem a ideia das estrofes ímpares com ligeiras alterações de palavras para variar o timbre da vogal tónica das rimas (i e a); é encadeada, porque o segundo verso de cada estrofe ímpar se repete como primeiro verso da estrofe ímpar seguinte.
Já a rima é apoio rítmico muito conhecido, mas só como igualdade de sons no fim das palavras a partir da vogal tónica - a chamada rima consoante. Muita gente ainda não sabe das rimas toantes, isto é, aquelas em que só são iguais as vogais a partir da tónica, como em "asa" e "cada", "velho" e "quero". Raros sabem que no latim eclesiástico, na poesia inglesa e na alemã, para haver rima, a repetição da última sílaba átona e até da última vogal átona. Lembrai-vos do Veni, Sancte Spiritus:
Veni, Sancte Spiritus,
Et emitte coelitus,
Lucis tuae radium.
Lembrai-vos de Shakespeare, que no soneto prefaciador de Romeu e Julieta rima "dignity" com "mutiny"; de Milton que no soneto "On Shakespeare" escreveu:
Thou in our wonder and astonishment
Has built thyself a livelong monument,
rimando "astonishment" com "monument". Lembrai-vos de Heine, que rima "Ich liebe dich!" com "bitterlich":
Doch wenn du sprichst: Ich liebe dich!"
So muss ich weinen bitterlich.
Finalmente pouca gente já terá reflectido que a aliteração é, no fim de contas, uma rima ao contrário, ou seja, uma rima dos começos das palavras. Sei bem que não houve intenção, pelo menos consciente, da parte de Gonçalves Dias em rimar por aliteração na segunda e terceira estrofes da "Canção do Exílio", mas a verdade é que essas rimas ao contrário dão à pequena obra-prima não sei que inefável musicalidade:
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não desfruto por cá;
Sem que inda aviste as palmeiras,
Onde canta o sabiá.
O número fixo de sílabas, com pausas obrigadas, é sem dúvida o mais imperioso metrónomo do ritmo. Todavia não é preciso ficar-se no mesmo metro para manter o mesmo ritmo. No poema de Gonçalves Dias intitulado: Minha vida e meus amores" ocorre uma mudança de metro muito interessante. O poeta vinha versejando em decassílabos acentuados na sexta sílaba ou na quarta e oitava:
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: - sonhei contigo! -
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei - talvez! - e já não pude crê-lo.
De súbito, nos versos 67 e 68, faz cair as pausas na quarta e sétimas sílabas, aproximando o ritmo decassilábico do ritmo do verso de onze sílabas, que vai aparecer nos versos 70 e 71:
Mas se você fala: "Eu gosto de você!"
Aí eu tenho de chorar amargamente.
ela tão meiga e tão cheia de encanto,
Ela tão nova, tão pura e tão bela...
Amar-me! - Eu que sou?
Meus olhos enxergam, enquanto duvida
Minh'alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
O movimento rítmico de um verso pode sofrer a influência do verso anterior ou do seguinte. É sabido que na poesia espanhola e na portuguesa antiga a vogal inicial de um verso podia embeber-se no verso precedente. Gonçalves Dias, tão lido numa e noutra, também versejou assim. O que admira é que até Alberto de Oliveira, mestre de uma escola de rigorosa métrica, haja precedido da mesma maneira, talvez inadvertidamente, quando em "O exame de Hercília" escreveu:
Subiu ao Atlas de um salto
E ao Kilimanjaro; logo
De tão alto,
Ao Barh-Al-Abiah de água clara
Baixou e ao saibro de fogo
Do Sahara.
O quarto verso ("Ao Barh-al-Abiah de água clara) tem oito sílabas, mas a primeira ("ao") se embebe na última sílaba do verso anterior, de sorte que no contexto da estrofe se mantém o ritmo do heptassílabo
Há casos até em que é forçoso quebrar o verso para manter o ritmo. Como fez Casimiro de Abreu na célebre "Valsa". O poema está distribuído em versos de duas sílabas:
Tu, ontem
Na dança
que cansa,
Voavavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim
Mas na última estrofe pôs o poeta a palavra "pálida" no fim de dois versos:
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida
No chão!
O vocábulo proparoxítano obrigava o poeta a abrir o verso seguinte por uma palavra começando por vogal ou a quebrar o metro de duas sílabas para uma. Casimiro valeu-se de um e outro recurso, um da primeira vez, o outro da segunda. Se ele não tivesse atendido à inter-relação dos versos e em lugar de "então" dissesse "no instante" e em vez de "rosa" escrevesse camélia", o ritmo seria sacrificado:
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
No instante;
Qual pálida
Camélia
Mimosa...
Foi em observação a esse jogo de ressonâncias de um verso em outro que eu no poema "Boi morto", escrito em octossílabos, quebrei a medida no terceiro verso da última estrofe.
Disse atrás que o encadeamento é o principal apoio rítmico de que se serve Augusto Frederico Schmidt nos seus poemas. Adalgisa Nery, que também emprega, ainda que menos assiduamente que Schimdt, o encadeamento, começou a usar da rima em versos não-metrificados, a partir, creio que do seu livro Ar do deserto, que é de 1943:
À medida que o vazio no meu corpo ecoa,
Cresce no meu espírito o sentido das vidas
acontecidas,
alançando nos meus ouvidos o pensamento que apregoa
Os soluços e a solidão das almas inutilmente pertencidas.
Mas verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal exterior senão a da volta ao ponto de partida à esquerda da folha do papel: verso derivado de vertere, voltar. À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar o seu ritmo sem auxílio de fora. É como o sujeito que solto no recesso da floresta deva achar o seu caminho e sem bússola , sem vozes que de longe o orientem, sem os grãozinhos de feijão da história de João e Maria. Sem dúvida não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo tão-somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se fosse, qualquer pessoa poderia pôr em verso até o último relatório do ministro da Fazenda. Essa enganosa facilidade é causa da superpopulação de poetas que infestam agora as nossas letras. O modernismo teve isso de catastrófico: trazendo para a nossa língua o verso livre, deu a todo o mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema. Resultado: hoje qualquer subescriturário de autarquia em crise de dor-de-cotovelo, qualquer brotinho desiludido do namorado, qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar se julgam habilitados a concorrer com Joaquim Cardoso ou Cecília Meireles.
Por isso era sempre com delícia que eu lia as críticas de Elói Pontes em O Globo e é sempre com prazer que leio as de Berilo Neves no Jornal do Commercio, críticos sem contemplação para com a poesia que não se exprime em versos medidos e rimados. O que me entristece é ver que eles nunca tenham tido influência bastante para pôr um paradeiro nesse babaréu de medíocres", como costumava dizer o primeiro no seu curioso estilo.
Por isso tenho às vezes uma grande tentação de esquecer tudo o que aprendi com mestre Ureña e dizer e jurar para toda a gente que "verso é o ajuntamento de palavras, ou ainda uma só palavra, com pausas obrigadas e determinado número de sílabas", como ensinavam Bilac e Guimarães Passos. Isto é, talvez substituísse a palavra "ajuntamento", que me soa vagamente a coisa ilícita, e acrescentasse a obrigação da rima e do duplo acróstico! Concordais?
(De poetas e de poesia)
in Seleta em Prosa e Verso, José Olympio Editora
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