S. Bruno, o Messianismo & Almir Sater



Almir Sater, tocando em frente



Artigo retirado daqui na íntegra e retocado ou "corrigido" para português, com a intenção de dar a conhecer o messianismo de Sampaio Bruno na ótica de um não português.
José Pereira de Sampaio, conhecido por Sampaio Bruno nasceu a 30 de novembro de 1857, no Porto, Portugal, onde viria a morrer a 11 de novembro de 1915, tendo-se formado em Medicina, em 1876.
 Aos quinze anos, já havia respondido a processos em tribunal por ter redigido nos folhetins O Vampiro e o Laço Branco, dois romances de ficção intitulados "Os Três Enforcados" e "Os Três Frades", tendo sido  libertado pelo mesmo dada a sua pouca idade. Aos dezassete anos publicou o seu primeiro livro "Análise da Crença Cristã", no qual afirmou que "um único momento de ociosidade de Deus iria constituir-se na sua imperfeição". Entendia Bruno que Deus é permanentemente activo e, portanto, perpetuamente criador. Nessa obra considerou o Catolicismo uma religião obsoleta, anacrónica e moribunda, e, em virtude dessa crença, determinou-se a demolir a estrutura teológica católica estabelecida. Esses conceitos, e outros de teor semelhante expostos na obra brunina, levantaram muita polémica, resultando saí imensos debates inflamados em torno de seu pensamento. Esses debates perduram até a contemporaneidade.
Tendo saboreado o prazer que a liberdade de expressão oferece, e consciente da importância e dos abalos que a sua obra causou, não parou mais de publicar as suas reflexões, quer sob a forma de artigos em jornais, quer sob a configuração de títulos de livros, exercendo substantiva influência sobre a geração da Renascença Portuguesa. Entretanto, é preciso ressalvar um traço marcante de sua personalidade: Sampaio Bruno era um homem extremamente tímido.O seu estilo de escrita ficou ancorado a esse factor, tornando-o num autor de difícil acesso e compreensão do pensamento lusíada ( irregular, prolixo e gongórico), recorrendo exaustivamente à oração intercalar e à inversão Não desejando, no seu íntimo, escandalizar a opinião pública, ainda que isso tenha acontecido com sua primeira obra, não expunha o seu pensamento com clareza, e na fixação gráfica de suas ideias, argumentava em dimensão inferior à importância dos temas em si.
Na sua obra três pontos são marcantes: a exaltação do amor, as relações inter-pessoais e a noção de liberdade. Talvez, para Bruno, o primeiro degrau da escada redentora do homem radique na auto-libertação e na mesma libertação de todos os seres, de tal sorte que essa redenção deverá se dar paralelamente e no seio de um envolvimento universal progressivo. Entretanto, deve-se assinalar que a própria categoria da liberdade nas lucubrações do Autor de A Ideia de Deus, para não resvalar para o puro egoísmo - o que fica evidente quando proclama e prevê uma redenção do próprio Universo - deve conjugar-se de uma forma ternária com relação à igualdade e à fraternidade. Nesse sentido, do homem se exige que ajude e se esforce para a eliminação do mal. Para Bruno, enfim, a liberdade é a natureza, o próprio destino do homem. Admitindo uma cisão herética(!?) entre Deus e o Universo criado, Sampaio Bruno rejeitou a omnipotência actual de Deus, mas subscreveu, contraditoriamente, o providencialismo, o profetismo e a escatologia. Esses temas estão explicitados em A Ideia de Deus (obra basicamente estruturada para se opor ao Deísmo Racionalista de Amorim Vianna) e em O Encoberto. Nesta última, ao discutir alegoricamente o Mito do Sebastianismo Português, expôs sua compreensão da filosofia da história portuguesa.
Exilou-se em Paris por dois anos (1891-1893) depois da sua participação como um dos mentores da fracassada Revolução Republicana de 1891. Ao retornar à Pátria, acabou por discordar do carácter positivista que passou a imperar no Partido Republicano do qual era membro. Afastou-se, por isso, da política nacional após o 5 de Outubro de 1910, para terminar seus dias como Diretor da Biblioteca Municipal do Porto, meditando sobre seus temas preferidos: religião e filosofia. Por seu espírito missionário, a sua vasta cultura, a sua excepcional actividade e a sua invulgar originalidade, tornou-se um ponto de referência insubstituível para a compreensão da história do pensamento português.
Como afirmou José Marinho no livro Verdade Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, com Sampaio Bruno, a filosofia portuguesa antecipa-se em pontos essenciais à poesia, à razão intuitiva, à imaginação simbólica. Ou como escreveu Aquiles Côrtes Guimarães no trabalho Em Torno da Questão do Absoluto no Pensamento de Sampaio Bruno: Singular em Sampaio Bruno é o facto de que, em momento algum, ele se desvincula do solo da cultura portuguesa para enfrentar [qualquer questão]. Por isto mesmo, não se trata de um filósofo que pensou em Portugal, mas de um pensador português comprometido essencialmente com os horizontes da cultura lusitana.[1]
Em vista disso, pensa-se que Sampaio Bruno seja um dos mais respeitados e admirados filósofos portugueses, e os seus escritos inserem-se nas reflexões do pensamento luso-brasileiro contemporâneo. Este trabalho, evidentemente, não poderia examinar todo o seu pensamento; por isso, ficou adstrito, basicamente, à sua Cosmogonia, que se estruturou, como se verá, em três momentos principais.

 A IDEIA DE DEUS

 Em A Ideia de Deus, obra que o Ilustre Pensador Portuense teria preferido que se intitulasse Amorim Vianna, seu interlocutor privilegiado, particular e preponderantemente no último capítulo denominado Mal e Bem, está minuciosamente delineado o seu pensamento metafísico. A primeira observação a fazer é sobre a estrutura da obra, que é composta de sete capítulos, formados de duas díades cada um, a saber: Filosofia e Metafísica; Matemática e Poesia; Superstição e Religião; Teologia e Moral; Contingente e Necessário; Infinito e Perfeito; e Mal e Bem.
Da obra global brunina, conforme já se teve oportunidade de referir, ressalva a preocupação do pensador com o tema da liberdade, e foi exactamente por isso - por defender a liberdade - que foi obrigado a se exilar em Paris. José Esteves Pereira discutiu em profundidade essa categoria, e como já foi assinalado, a ideia do progresso em Bruno, particularmente no que tange ao homem, é triádica, pinçando-a e a amalgamando a duas outras: igualdade e fraternidade.[2] Esta postulação constitui-se em um dos pilares primordiais do pensamento filosófico do Especulativo Portuense. Por suas posições precisas e corajosas, Leonardo Coimbra viria a cognominá-lo Apóstolo da Liberdade.[3] Nesse particular, não há exagero de Leonardo. É ainda Esteves Pereira que chama a atenção para a reflexão brunina no que concerne ao binómio LIBERDADE versus AUTORIDADE, e as possíveis articulações de princípios e regimes. O Esquema que será apresentado a seguir resumirá esse tema .[4]
Das diversas categorias observadas no Esquema 1, conclui-se que é evidente que jamais poderia ter sido monárquico, comunista ou anarquista. Para se arrematar esse tema (entretanto sem se ter a pretensão de esgotá-lo), fica-se com a ideia de Bruno sobre o futuro, cuja glória, pontuou o Filósofo, será alcançar Unidade na Liberdade.[5]

 

CATEGORIAS
Autoridade
Liberdade
Monarquia ou Patriarcado 
(governo de todos por um só)
Democracia 
(governo de todos por cada um)
Panarquia ou Comunismo 
(governo de todos por todos)
Anarquia 
(governo de cada um 
por cada um)
Esquema 1: Autoridade x Liberdade


       Mas o ponto mais polêmico, mais discutido e mais pensado da obra brunina aparece exatamente no livro A Idéia de Deus, no qual o Filósofo propôs uma via especulativa para a existência do Universo, que só aconteceu e se mantém, devido à primitiva existência de um Ser Homogêneo a ele superior, e, portanto, que o excedia e excede. Do que se revisitará a seguir, percebe-se que não poderia concordar com Amorim Vianna quando este afirmou: Deus é permanente e não muda: ‘est, non fit’. Se alguma concordância há com o Racionalismo Deísta do autor da Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé, é o retorno do Absoluto à Sua homogeneidade inicial. Assim, se Vianna entendeu que Deus é, Bruno viria a admitir que Deus seria novamente. A percepção de Bruno para este acontecimento é, a juízo deste leitor apaixonado das reflexões bruninas, surrealisticamente triádica, e, portanto, ancora-se em três momentos distintos e peculiares. Assim deixou gravado seu esquema cosmogónico:
No princípio era a Perfeição, o espírito homogéneo e puro. No segundo momento, mercê do efeito dum mistério, temos o espírito diminuído e a seu par a diferença que se tornou heterogénea, isto é o mundo. No terceiro momento, reintegrar-se-á o espírito puro, pela absorção final de todo o heterogêneo. Assim, três são os instantes supremos do crescimento. Um: é o espírito homogéneo e puro, que foi e há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o espírito puro, mas diminuído actualmente pelo destaque separativo do Universo. Enfim, o outro ainda: é esse Universo, que aspira a regressar ao homogéneo inicial.[6]

HOMOGÉNEO—› HETEROGÉNEO—›HOMOGÉNEO
 

PERFEIÇÃO—› IMPERFEIÇÃO—› PERFEIÇÃO

       Exagero ou não, pode-se pensar em admitir que A Ideia de Deus foi articulada para alcançar esse clímax, ou seja: a proposta brunina para a existência de Deus e, consequentemente, para a própria criação do Universo e dos seres brotou antes, tendo se constituído, possivelmente, no mote para a elaboração da obra como um todo. Realmente, sem se pensar em minimizar o esforço e o mérito desse insurreto Quixote Português, o livro ora referenciado, smj, poderia resumir-se tão-só ao último capítulo - o Mal e Bem. Este é o ápice da metafísica brunina, o ponto nuclear da sua meditação. Conjecturando, talvez o Autor tenha pensado que não seria dada a devida importância a uma mensagem tão extravagantemente heterodoxa e sobrenaturalista em um livreto de poucas páginas. E assim preferiu elaborar uma obra mais densa e de tomo, na qual destilou toda sua insurgência contra a tradição teológica, metafísica e científica vigentes. Fez muito bem. Presentemente, o autor deste modesto rascunho, quase um século e meio depois do nascimento de Bruno, especula sobre suas especulações. Assim é a trajetória da Filosofia.
Voltando à coluna vertebral da cosmogonia brunina, algumas considerações devem ser feitas relativas a cada um dos três momentos por ele anunciados. Primeiro Momento: Deus existe. No início Ele era a Plena Consciência. Era Omnipotente; era Invariável, Homogéneo, Infinito e Puro. Francisco da Gama Caeiro, percucientemente, entendeu que a única noção acessível deste Momento é a de tempo, e como não poderia ser diferente, com os mesmos atributos.
No segundo Momento: ocorre a instabilidade, e acontece uma preliminar mudança de atributos. Deus, lentamente, vai deixando de ser Omnipotente para se ir tornando Omnisciente. Inicia-se uma diferenciação de parte do Espírito Puro. No segundo momento, do Espírito Puro diminuído fluem para o Espírito Alterado (tempo alterado ou heterogéneo, matéria, mundo e movimento) permanentes emanações que o penetram, o depuram e o incitam a retornar e a perseguir a reintegração. Segundo Bruno, as emanações oriundas do Espírito Puro diminuído não prevaricam à medida que penetram no Espírito Alterado e se afastam de sua origem. O movimento é o início e o fundamento para o regresso ao Espírito Homogéneo. E assim, em consequência de sua diminuição, Deus - segundo Bruno - sofre da diminuição do espírito puro e do mal da criatura. Por isso, o homem deve libertar-se a si, libertando os outros homens; decorrendo dessa linha de raciocínio oriunda de uma compreensão à qual Bruno denominou de verdade maior, foi possível ao filósofo compatibilizar providência, milagre e oração, tendo, por isso, ou também por isso, colocado o pensador portuense em franca oposição e em rota de colisão com o Deísmo Racionalista de Amorim Vianna. Assim deixou Bruno gravado em A Ideia de Deus: A oração é a aspiração do espírito alterado para o espírito puro; subordina-se a uma lei transcendente de atracção. O milagre é a emanação que impulsiona o espírito alterado a avançar na libertação. A Providência é o concurso do espírito puro diminuído com o espírito alterado para, pela libertação deste, se completar, reintegrando-se o Absoluto.[7]
Do exposto, nota-se que, em Bruno, fé e razão são harmónicas, porque Deus e homem haverão de se encontrar, e a Verdade, observa Caeiro, brotará dessa síntese, e, assim, ambas são termos analíticos de uma mesma Razão. Objecta-se, todavia, terminantemente, a essa linha de justificativa, porque, ressalvada compreensão mais avançada da qual não se possui elementos para concordar, entende-se, que a fé é um acto unilateral e solitário de exclusão da razão — é a própria deserção consentida da razão — e só pelo conjunto de dogmas e de doutrinas de uma dada religião, pelas diversas variantes de argumentos autoritários, pelo infundado medo do desconhecido e pela infantilidade abstrusa de desejar agradar a Deus ou aos seus presumidos e auto-nomeados representantes, alguém pode abrir mão da sua LIBERDADE (o que se configura em uma incoerência no pensamento de Bruno), e se deixar cercear por essa virtude teológica, que só pode interessar aos detentores do poder teológico, qualquer que seja a origem, a natureza ou a confissão. A fé só cabe se ancorada em e derivada de uma EXPERIÊNCIA PESSOAL que a justifique. Ainda assim, nada é definitivo na humana caminhada. O ser humano obriga-se a estar alerta para novas descobertas, e o que hoje pode ter aparência de coisa absoluta, amanhã poderá se modificar. Só o tolo tem compromisso inamovível com as ideias que engendrou ou engendra. Leonardo Coimbra reflectiu magistralmente sobre esse tema e que será examinado em Filosofia Portuguesa V. A ciência, por outro ângulo, mostra isso a cada instante. Enfim, na visão brunina, a meta universal do estado de coisas que representa o Segundo Momento é o retorno ao Primeiro Momento. O Heterogéneo deseja, precisa e há-de se reintegrar no Homogéneo inicial. A ansiedade pela volta à origem é permanente; a aspiração dessa essencial espiritualidade, segundo Bruno, ainda que rebelde, constitui-se em um facto não recorrível; a reabsorção no Puro Bem associa nessa trajectória Homem e Universo. Ora, não se pode, terminantemente, concordar com essa especulação, pois, o mal é uma ilusão fabricada própria da humana ignorância. Disto se serve a senda esquerda ou negra. A Divindade e o próprio Universo estão ancorados em Leis Eternas, Imutáveis, onde não é possível equilíbrio, Irredutíveis, que, em última instância,são independentes da limitada razão humana. São o que são, sempre foram e sempre serão. Deus e o Universo não se amoldam à compreensão do ser; é o ser que, por um supremo esforço e pelo mérito, vai, paulatinamente, compreendendo a consistência da Criação e realizando sua reintegração na Consciência Cósmica, da Qual, em realidade, nunca esteve desvinculado, afastado ou excluído. A famosa formulação de Protágoras o homem é a medida de todas as coisas precisa ser melhor examinada e comparada com os pensamentos de Santo Agostinho (Si fallor sum: se erro, existo) e de Descartes (Cogito, ergo sum: Penso, logo existo). Se, porventura, alguém se engana ao somar 1 + 1, ao perceber que se enganou, tem a possibilidade de corrigir o erro cometido, mas, enquanto ser pensante (res cogitans), isto lhe garante que existe. Fica, entretanto, uma questão em aberto: por pensar, o ser sabe que existe ou por existir pode pensar? O que se sabe realmente a respeito dos minérios e minerais, vegetais e animais? Pensarão todos? De qualquer sorte, parafraseando um belo pensamento de Nadime L'Apiccirella, estudante de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, a crueldade e a fraternidade estão em lados opostos, entretanto ligadas por uma ponte: a responsabilidade e a consciência de que somos todos irmãos. Precisamos, assim, estar alertas com nossos pensamentos, pois podem gerar palavras, actos e escolhas que não são, em si, harmônicos com a HARMONIA CÓSMICA. A única limitada possibilidade de compreensão parcial do funcionamento do Teclado Universal é pela Via Transnoética. Limitadíssima, pois o ente, nesta Ronda, ainda não completou sequer a integralidade consciente de seus sete membros constitutivos. Por último, é preciso ser compreendido que o ser descodifica as impressões transnoéticas acessadas de acordo com sua capacidade de apreensão. Logo, ainda que a LEI seja uma e única, cada ente a realiza de forma pessoal, sendo, ipso facto, intransferível em sua totalidade (talvez, nem em parte) para outro ente. Esta argumentação não se esgota aqui. É o começo de uma grande peregrinação. 
O Terceiro Momento: tendo em vista a aspiração do heterogéneo se reintegrar no Homogéneo, a reintegração acontecerá. O espírito retomará sua homogeneidade inicial e primordial. Assim, pode-se inferir que a trajectória metafísica Homogéneo-Heterogéneo-Homogéneo é equivalente, mercê do efeito de um mistério, ao retorno circular Omnipotência-Omnisciência-Omnipotência. Resumindo:

 OMNIPOTÊNCIA—› OMNISCIÊNCIA—› OMNIPOTÊNCIA

Sem se pretender de forma alguma esgotar a análise, melhor, a revisitação do pensamento metafísico brunino, até porque a finalidade desta pesquisa tangencia outro enfoque ainda que adentro da Ciência Primeira, encerrar-se-à este item com um exame sintético da díade mal e bem. Segundo Sampaio Bruno o homem não poderia ter a ideia de bem se não tivesse a idéia de mal. E o próprio triunfo episódico do mal, segundo seu entendimento, levou-o a concluir que a Omnipotência de Deus, como se viu, havia se comprometido, tendo toda ela diminuído, talvez, melhor, se modificado, decaindo tal atributo para um plano inferior por assim dizer, ou seja, para a classe tão-só de Omnisciência. Para o Especulativo Portuense os conceitos ou noções de várias categorias têm sido sistematicamente invertidos, isto porque, segundo ele, os idealismos optimistas laboram todos no equívoco derivado da concepção unitariamente absolutista do seu, reciprocamente refractário, dualismo irredutível. Contrariando o Ecletismo de Cousin (e nisso se aproximou de Cunha Seixas, ainda que este último também tenha sido um eclético superlativo), entendeu que fealdade, erro e mal são noções positivas; e, por outro lado, negativos são os conceitos de verdade, beleza e bem. A saúde é, portanto, uma idealidade, sendo a doença o estado normal do homem.[8] Talvez se possa debitar essa linha não-reciclada e angustiosa de raciocínio ao próprio estado de saúde de Sampaio Bruno, que, ao longo da vida, nem sempre foi dos melhores, e, também, ao fato de, no final de sua existência, padecer de mal tormentoso, mas que, por timidez própria de sua personalidade, não foi sanado, nem em tempo, nem por um especialista que se impunha. Recorda-se que A Ideia de Deus foi publicada em 1902, treze anos antes de seu prematuro falecimento. Outra possibilidade que, ou anula ou se soma à primeira, foi o lance de, ainda muito jovem, ter sofrido a sua possível primeira grande agressão — o exílio. Outros aspectos de sua vida pessoal podem ser apontados como prováveis propiciadores e estimuladores dessa linha não-ortodoxa de tratar a Metafísica como, por exemplo, as injustiças cometidas contra seu pai, a brutalidade pedagógica imposta por seus professores nos tempos de escola e a clara audiência de que era portador. Sabe-se, hoje, que a para-normalidade (mal administrada) pode acarretar, em alguns casos, sérios distúrbios de personalidade. Se esse foi o caso de Bruno, adjectiva ou substantivamente, pode-se apenas presumir.
E é por isso, conforme se apontou anteriormente, que Bruno entendeu que a ideia de bem só pode ser sentida comparativamente à de mal. O mal existe para que o ser possa formar juízos e, nessa direção, Bruno entendeu que resulta um paradoxo sarcástico negar a existência do mal neste nosso Universo.[9] A grande questão é examinar se o mal existe em si e por si, ou se é produto de desarmonias e de insanidades. Acho que, anteriormente, deixei 'no ar' essa matéria. 
Ao término desta sucinta análise, deseja-sefrisar os entendimentos de Aquiles Cortes Guimarães e de Eduardo Silvério Abranches de Soveral. O primeiro classifica o autor d’A Idéia de Deus como um filósofo de ruptura. Já o segundo, como de aprofundamento. O ponto de partida das reflexões de Soveral é a análise do que entendeu Sampaio Bruno do Catolicismo. Recorda que a Análise da Crença Cristã constitui-se em violenta diatribe contra o Catolicismo. Em A Geração Nova, alguns pontos, segundo Soveral, mantiveram-se intocados; outros sofreram alterações conceituais. No que concerne à Gnoseologia não há grandes alterações; relativamente à Cultura, permanece uma subordinação ao ideal iluminista; e quanto ao Progresso, esta obra veio confirmar e desenvolver algumas teses subscritas na ‘Análise da Crença Cristã’, e negar outras.[10]
Depois da publicação dessas duas obras, relata Soveral baseado nas próprias declarações do Autor Portuense, Sampaio Bruno passou por experiências insólitas de natureza paranormal, mediúnica ou sobrenatural. Não importa como se as interprete ou classifique, mas o fato marcante foi a convicção adquirida por Bruno da existência de seres supra-terrestres. Dessa forma, observa Soveral:
... se abriu à sua razão experimental, ao seu deísmo ético e à sua metafísica meramente cultural, a nova visão de um monismo teológico, que permitiu uma ‘segunda navegação’ gnoseológica e impôs uma missionação de cariz religioso cujos procedimentos deveriam ser simultaneamente herméticos e racionais.
É certo que superou uma posição materialista-culturalista, que só aceitava uma metafísica de raiz experimental, e considerava Deus com a mais alta e fecunda idéia do Homem, como o ideal onde as mais belas virtudes eram elevadas ao infinito. A indecisão ontológica das idéias e da cultura foi ultrapassada. Ao materialismo inicial sucedeu um panteísmo espiritualista. Mas, ainda neste, a condição humana ficou indecisa e frustrada, sem atingir o ápice de sua dramaticidade existencial que consiste precisamente na tomada de consciência de que é na salvação de cada homem ‘concreto’, na decifração ‘pessoal’ do destino Humano, que está o cerne da religiosidade, ou, se preferirmos, da relação essencial que liga a Humanidade ao Absoluto. E essa limitação foi-lhe imposta pela fidelidade às posições mestras de que expôs logo na 'Análise da Crença Cristã': o repúdio, por absurda, da tese da criação a partir do nada, da noção de pessoa etc. Foi vítima enfim, da forma preconceituosa e hostil como analisou o Cristianismo, negando antecipadamente às suas doutrinas a possibilidade de terem valor filosófico.[11]
Ainda que se concorde com Soveral de que a indecisão ontológica das idéias e da cultura tenha sido ultrapassada, e de que do materialismo tenha n’A Idéia de Deus brotado um Panteísmo Espiritual, não se pode concordar que seja na salvação de cada homem concreto que esteja o cerne da religiosidade, nem a relação essencial que liga a humanidade ao Absoluto. Se foi hostil ou não a forma como Bruno analisou o Catolicismo, certamente que preconceituosa não foi. Foi possivelmente, inusitada, infirme, inverossímil e até, substantivamente contraditória e insustentável, pois o que é onipotente é tudo, inclusive onisciente. E o que é omnipotente não pôde, não pode e não poderá ser menos do que onipotente. E se se chega ao limite de admitir o Absoluto como Omnipotente, na onipotência estão inclusas a onissapiência, a oniparência, a omnipresença e a omnividência. De passagem, não se pode, jamais, deixar de ter em mente, que ao conjeturar sobre a Divindade e seus modos de expressão, o homem utiliza categorias e avaliações humanas, que são apenas reflexos ilusórios e/ou distorcidos dessa mesma Divindade, da qual o próprio homem ainda se encontra em um estágio placentário de compreensão, de realização, de ascensão e de reintegração. Assim, especulativamente, se se valorar com o número 1 (um) cada um dos atributos mencionados, a soma, só por equívoco ou desatenção, pode ser interpretada como igual a 5 (cinco). Omnipotência + omnissapiência + omniparência + omnipresença + omnividência são iguais a UM, ou seja, OMNIPOTÊNCIA (1 + 1 + 1 + 1 + 1 = 1). Pode-se usar a própria Trindade para, comparativamente, reforçar e melhor esclarecer a asserção anterior, ou seja: Pai + Filho + Espírito Santo = ABSOLUTO. Não que o Absoluto dependa de cada parte em si, ou de cada uma das Pessoas que constituem a própria Trindade, para ser e permanecer absoluto. Em realidade, o Absoluto é Uno porque é Trino e é Trino porque é Uno. Esta última afirmação pode, aparentemente, estar em contradição com a anterior, mas se se trocar o vocábulo dependência por interdependência, então, neste caso, talvez se possa compreender melhor a Lei do Triângulo. Nesse lineamento especulativo entende-se que Pai + Filho + Espírito Santo = UM, ou seja, 1 + 1 + 1 = 1, ou que, Pai = Filho = Espírito Santo = ABSOLUTO.[12] Em última instância: o Pai é, o Filho é, o Espírito Santo é, e o Absoluto, consequentemente, é. E se o Absoluto é, o próprio tempo é também. Não houve o antes, não haverá o depois. Passado e futuro são dimensões afeitas exclusivamente ao género humano, como também o é o próprio espaço. Espaço e tempo são apenas construções da mente humana (nesse particular, acolhe-se o pensamento de Amorim Vianna). Com o advento da Teoria da Relatividade, o entendimento sobre o espaço e sobre o tempo passou, na verdade, a ser representado por um contínuo espaço-tempo quadri.dimensional. Agora, a admissibilidade de que a Omnipotência de Deus mercê do efeito dum mistério(!?) tenha se alterado, se apoucado ou se subtraído a si própria, e se reduzido tão-somente à omnisciência, pode, smj, ser admitida como uma ponderação ilógica, artificial, insustentável e inaudita, jamais como preconceituosa. Sacar do nada uma afirmação como essa, tendo por base, exclusivamente, o apoio da expressão mercê do efeito dum mistério, é arremessar ao vazio os cânones do pensar filosófico e desconhecer o mais elementar (mas de veracidade insubstituível) princípio esotérico: Assim como em cima, é em baixo. Na verdade, é e não é. Por isso, o raciocínio noético utilizado algumas linhas atrás, para contraditar o absurdo brunino, é, ao mesmo tempo, também, talvez absurdo, e, provavelmente, inverosímil. O exercício filosófico que se propôs, pode entusiasmar o aprendiz não preparado, mas não convencerá o místico evoluído, nem o iniciado ou o ocultista autênticos. Omnipotência, onissapiência, omniparência, onipresença e onividência são, tão-somente, entre outros, meros vocábulos dialeticamente derivados das especulações teo-onto-gnosiológicas da mente objetiva (ou subjetiva, que nada mais é do que um degrau acima da objectiva), que expressam o estágio psicológico e espiritual-religioso da consciência do ser singular, no sentido de tentar compreender a ilimitabilidade cósmica (in)criada, relativamente à Divindade (abstracta ou concreta), que presumidamente a criou. Se a criou! Mas, ainda que Bruno, presumidamente, nada tenha conhecido da Tradição Primordial, reconhece-se e se aplaude seu arrojo propugnador, já que a própria Tradição, também, paradoxalmente, desvela-se subtilmente no âmbito do contraditório. Por tudo isso, agasalha-se o pensamento de Aquiles Guimarães. Sampaio Bruno, compreende-se, foi um pensador de ruptura, que independente de qualquer juízo ou análise – por mais duros e veementes que sejam – que se faça de sua obra, revelou-se sim, e aí se concorda com Soveral, um verdadeiro Missionário e Herói Português, que dedicou sua vida ao progresso moral e material da humanidade, e, em particular, do seu País. Numa análise contemporânea, o próprio Soveral, insere-se nesta categoria de pensadores. Este autor declara-se saudoso da convivência amiga e fraterna de que desfrutou com o Insigne Portuense Eduardo Soveral. Foi em um modesto restaurante na Cidade do Porto, bebericando Água Mineral Luso, por mais de quatro horas, que recebeu sua primeira magna aula sobre Filosofia Portuguesa. Inesquecível momento de reflexão, de aprendizado e de bondade. Irrefragavelmente, Soveral encontrou o Céu de sua compreensão. Estará filosofando com Sampaio Bruno?
Prosseguindo: Até porque, manter posições irreduzíveis, encastelar-se em princípios irredutíveis, constitui-se em um coisismo, como, em sequência, já se afirmou, diria Leonardo Coimbra. E, em Bruno, percebe-se, há mudança, há aprofundamento em muitas de suas teses juvenis. O que não significa que não tenha havido ruptura. Aliás, o que mais se observa em A Ideia de Deus é um fabuloso rompimento que jamais sofreu reconciliação com a dogmática católica. Cunha Seixas representou outro exemplo de filósofo de ruptura, pois tendo também se insurgido contra a divina religião, dela se afastou e formulou, como se reviu, um sistema espiritualista original, cuja ontognoseologia contrasta vertical e horizontalmente com sua formação religiosa iniciada no seio da família, em Trevões, e que haveria de se esgotar, mais tarde, em Coimbra, quando, inclusive, decidiu abandonar o Curso de Teologia que havia iniciado. Domingos Tarrozo é outro filósofo que se insere nessa categoria, e sua Filosofia da Existência precisa ser melhor examinada pelas elites pensantes, portuguesa e brasileira. Ousa-se afirmar que há mais coerência na cosmogénese tarrozina, do que na metafísica heterodoxa de Bruno, ainda que teleologicamente otimista, ainda que a teleologia seja uma contradição da noesis. Outra ilusão da razão(?!), portanto, é a admissão de que o Universo progride para um télos. O Universo é; não virá-a-ser.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Conclusão: ainda que em Bruno tenham ocorrido modificações e abrandamentos em alguns temas elaborados nos anos verdes, nenhum filósofo português rompeu tanto quanto ele no tocante à ideia de Absoluto. Foi, inquestionavelmente, um dos mais heréticos representantes do moderno pensamento português. Concordar ou não com suas ideias é privilégio de quem o lê, como privilégio foi ter o Especulativo Portuense ousado reflectir em instâncias tão particulares e de tão difíceis compreensão e interpretação. Ele meditou e teve ousadia e coragem de divulgar o conteúdo de suas pesquisas. Por isso, deve ser respeitado e amado como uma luz a mais na caminhada de todos quantos buscam uma compreensão, que acalme, dê segurança, ofereça liberdade, e proporcione independência, enquanto seres neste plano de existência. E, por último, deve-se ter sempre presente que qualquer monografia ou ensaio antes de serem analisados, devem ser compreendidos, ou seja, todo texto é contextual por natureza. A advertência, com a qual integralmente concordo, é de Soveral. Assim, autor e época estão inapelavelmente associados. Problemas que o inquietem, experiências pessoais, políticas e sociais, influências literárias etc., devem ser cuidadosamente considerados no exame sequencial do pensamento filosófico, sociológico, político ou qualquer outro da obra completa de um pesquisador. O que não se pode e não se deve é contemporizar com especulações que contrariem um outro modo de perceber e de sentir uma dada questão específica. O contrário seria hipocrisia. No mínimo. Mas, embaralhar Teologia com Filosofia só produz anarquia, e, como ensinou Pitágoras, este é o pior dos males. Pior é especular em matérias que se conhece pouco ou que se desconhece inteiramente. Isto poderá comprometer o próprio e o outro. Sob outra visada, divulgar o que não pode ou não deve ser propagado, é uma irresponsabilidade. Acredita-se que nem o próprio Bruno compreendeu exactamente a especulação metafísica que planeou articular.

 
DADOS SOBRE O AUTOR

Rodolfo Domenico Pizzinga
Mestre em Educação, UFRJ, 1980. Doutor em Filosofia, UGF, 1988. Professor Adjunto IV (aposentado) do CEFET-RJ. Consultor em Administração Escolar. Presidente do Comitê Editorial da Revista Tecnologia & Cultura do CEFET-RJ. Professor de Metodologia da Ciência e da Pesquisa Científica e Coordenador Acadêmico do Instituto de Desenvolvimento Humano - IDHGE.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
1. In: Colóquio Antero de Quental

Comentários

Mensagens populares