Cristina Guedes
foto retirada da web
Trocada em silêncio.
No seu desespero profundo, confundia místico com religioso. Mas a fé era a mesma. Que a resposta viesse, em jeito de milagre, fora de si e ao seu encontro. Passara a vida em silêncio a escutar os outros. As suas vidas e tumultos. Os balancetes e os sonhos que construíam. O diálogo era uma coisa inventada à hora das refeições, para entreter os filhos aos pratos e ao esvaziar do tempo. Ás vezes, respondia com frases ás perguntas que lhe eram dirigidas, mas na sua maioria de vezes, nem de monólogo usava, sozinha nos cómodos, na limpeza ou na arrumação dos espaços, na conversão de um lar. O lar da sua família. A presença sem palavras, sem queixumes e lamúrias, sem risos e nem gargalhadas. Reservava a comunicação aos seus pensamentos.
A outra baralhou e voltou a baralhar. Lançou-lhe um olhar do tipo: as vidas são todas iguais no seu limite inferior ou superior. E Rosalina suspirou, respondendo ao olhar com um: sei que pode ler o meu medo. - As cartas baralhadas foram partidas e entregues a uma sorte independente do seu medo. A cartomante dispô-las em dezasseis casas. Pegou num novo baralho de cartas, desta feita mais pequenas, e pediu a Rosalina que voltasse a partir em cima das dispostas. Prontamente, Rosalina decidiu entregar-se às previsões do outro lado de lá. Deus, mães-de-santo ou arcanos, todos os que pudessem vir em seu socorro, seriam bem-vindos.
Não lhe perguntara mais do que: quer realmente saber?
E Rosalina, esposa e mãe de filhos, arrependida e temerosa, desatou num pranto. Que viria a sorte dar-lhe senão a má notícia do que vivia actualmente? Mas Nena, a misteriosa mulher não ouvia o seu pranto e atirou as mensagens das cartas numa enxorrilhada de galego que fez a chorosa mulher parar no tempo, limpando as lágrimas mil vezes derramadas pra um lenço de papel a estrear e amarrotado na hora. - O amor é ingrato? Não se aprisiona numa caixinha bem conservada. Mandou-o sair vezes demais. Que ele saiu mas não foi de vez. Vai experimentar o calor, e olhe que não é coisa recente. É uma experiência afectiva. Não lhe faça a mala. E os documentos não assine. Sejam de divórcio ou de tribunal. Guarde os bens noutras contas, noutros nomes. A outra quererá rifá-lo logo depois. E fale, converse, conquiste. Vá, e ouse passar pelo renovar da mulher. Que tem várias estações. Só não as deixe a todas penduradas no rosto! E lave o rosto com mar.
-Quanto lhe devo?
Saiu apressada. Como se fugisse dele, o benfeitor que a arrasara. Mais que um marido, era o companheiro de sempre, das confidências casuais e sigilosas, dos rompimentos e dos contratos, das discussões e dos pontos de vista partilhados. Fazer o quê com todo o vazio que lhe assomava à boca, em jeito de azia? Onde tinha errado? Onde o tinha perdido? E lá no fundo, sabia Rosalina que o amor não se acabara. Continuava refugiado do seu lado esquerdo, numa espécie de amuleto, o rosto, o nome idolatrado. José Duarte. E ao lado, com mau presságio, o rosto de uma jovem mulher a quem nada devia, nem a perda do marido, com quem ele partilhava agora a cama e os momentos de vida ausentes na dela. Quis gritar com ele, mas não saía um único som da glote. Trocada por alguém sem cumplicidades, sem afinidades, sem mensagens e sem passado. Trocada por um vestido mais curto e ousado, por uns cabelos mais artificiais, por uma imagem de marca sem marca. Por uma mulher sem escrupulos. Não, trocada por um momento de desespero e solidão. Trocada a seu pedido, pelo marido. E agora, chegada a esta encruzilhada da vida, jurava, perante o mar, que qualquer voto no amor-abnegação era em vão. Qualquer milagre, ficitício. Jurava, perante o mar, quebrar o silêncio secular, e pedia a coragem de construir a promessa avessa á sua natureza. Sem apelar a Deus de qualquer religião, ou a arcanos maiores. Tinha que reconstruir o que perdera.
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beijos
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