Cristina Guedes



Um prefácio captura
Quando a alma fala


São múltiplas as razões que explicam a escolha da Neurologia como especialidade, desde a curiosidade sobre os mistérios do cérebro, até ao puro prazer intelectual de decifrar os segredos de um diagnóstico difícil, ou ainda o entusiamo de contribuir para uma área da Medicina alimentada pela descoberta científica. É, no entanto, mais difícil compreender por que motivo se opta, dentro do campo da Neurologia, pela neuro-oncologia pediátrica. Claro que os bons motivos acima assinalados permanecem, mas são atenuados pelo panorama trágico que o clínico enfrenta no seu quotidiano profissional. É certo que, por vezes, também o neurologista de adultos lida com desfechos dolorosos, não sendo agradável, por exemplo, afrontar as consequências de um acidente vascular cerebral ou de uma demência de Alzheimer, já que o sofrimento e o sentimento de perda são o que são em qualquer idade. Contudo, há algo de particularmente doloroso quando as vítimas são crianças, algo de especialmente injusto quando se corta uma vida por viver. Ao contrário da maioria dos pediatras, que - segundo me dizem - se nutrem da alegria de contribuir para que os seus doentes se tornem adultos saudáveis, aos neuro-oncologistas pediátricos mais não resta do que dizer: "lamento".

No livro notável de Nuno Lobo Antunes, Sinto Muito, ficamos a conhecer a vida de um destes médicos, e descobrimos os motivos da sua escolha profissional. Todos os dias a especialidade lhe oferece a oportunidade de viver de perto o melhor que a humanidade contém. À primeira vista, pode parecer que os benefícios resultam simplesmente do sofrimento dos outros, uma atitude aparentemente bizarra e paradoxal. Mas não há nisso nada de bizarro ou de paradoxal. Pelo contrário, trata-se de uma resposta elaborada, refinada e nobre. A força do autor provém da coragem manifestada pelos jovens pacientes e, em particular, pelas famílias confrontadas com a crueldade do seu destino. Ao invés de adotar uma visão cínica ou distanciada, o autor mergulha no caos dramático que o rodeia, para lhe dar forma ou razão, para oferecer socorro quando nenhum lhe parece possível. Como o menino que assobia uma melodia alegre para afastar os seus receios, o autor transforma o espetáculo aterrador que os seus olhos enfrentam, e dele retira coragem, e até apaziguamento. No fundo trata-se de uma situação idêntica à que Wordsworth tão bem prescreve, embora para circunstâncias diferentes: "Não nos lamentaremos, antes iremos encontrar força no que para trás ficou".

É possível debruçarmo-nos sobre a humanidade subjacente a esta resposta. As suas raízes profundas encontram-se no mesmo cérebro que, uma vez invadido pelas células cancerígenas, o autor tem de cuidar. Trata-se de uma variante deliberada, cultivada, tragédia grega. É a mesma resposta que nos permite ler um romance notável, ainda que doloroso - ou ver um filme doloroso que nos emociona - e no fim emergir com mais coragem para enfrentar os nossos próprios dramas, grandes ou pequenos, e com a mais nobre das intenções: o desejo de ajudar os outros.

Sinto muito é sobre o sofrimento em geral, ou se quisermos, sobre a dor, seguida de perda, seguida de dor. Entristece o coração, para depois o desanuviar e torná-lo mais leve. Não se trata de um livro que siga a presente moda artificial, em que os neurologistas descrevem as bizarrias dos seus doentes, ou deles próprios, na intenção de abrilhantar a cultura. Sinto Muito é o artigo genuíno. Qualquer médico com experiências semelhantes, nele se vai reconhecer, tal como quem quer que tenha estado do outro lado do espelho de Alice. Os leitores não terão dificuldade em confiar nesta nova voz-do-mestre.

Sinto Muito é um título fabuloso, que nos remete, desde logo, para a prosa muitas vezes feliz e rigorosa do autor. Apesar de o cenário ser predominantemente nova-iorquino, a matéria é filtrada por uma sensibilidade portuguesa, tanto emocional como linguística, que a torna nova e sedutora. Quando é sincera, a expressão "sinto muito" não significa o mesmo que "lamento". Esta última é uma expressão formal de lástima, a primeira acentua um sentimento devastador de perda.

A primeira vez que encontrei o Nuno Lobo Antunes, por impossível que pareça, foi há cerca de trinta anos, era ele ainda estudante de Medicina. Na altura, convencido que estava da minha capacidade de julgar as pessoas, previ-lhe uma carreira brilhante. Será preciso insistir na justeza da previsão?

E, no entanto, não foi fácil, de início, ler este livro maravilhoso. De alguma forma, os ensaios lêem-se como se de "memórias" se tratassem, e entrar nas memórias de alguém que se conhece é o mesmo que ouvir, de forma acidental uma conversa que não nos é dirigida. Transgredimos, violamos propriedade privada, e a esta infração associa-se um sentimento de embaraço e de culpa. Ao pensar melhor, é-nos evidente que tais sentimentos não se aplicam. O desejo do autor é de que os seus relatos sejam "como se" ouvidos sem querer, as suas missivas lidas "como se" por engano. O escritor de memórias pode até desejar que o leitor, em jogo simbólico de "faz-de-conta", sinta a emoção do embaraço ou da culpabilidade, para que o poder de autorrevelação se possa gravar na mente do leitor em dois registos emocionais, um que resulta do próprio tema da escrita, o outro do papel dúbio de observador involuntário.

Nuno Lobo Antunes pretende, com bom propósito e bons resultados, deixar que o seu coração se pronuncie, que se liberte a sua voz, que seja conhecida a sua humanidade. E, na verdade, a alma fala.


António Damásio, prefácio do livro Sinto Muito de Nuno Lobo Antunes

Los Angeles, Agosto 2008.


É, mais que um atestado de amor, um convite ao conhecimento do universo da dor, uma espreitada ao outro lado do espelho.



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