Cristina Guedes
I
Serei grata como Pietã
mais tarde, quando a lua
surgir no infinito,
depois do meu pranto
e do meu grito
Fui feliz e não sou já,
Sentia eu noutro tempo
No dobrar da esquina,
Ainda há pouco,
poucochinho
Num ápice e
Já não era capaz
E não, não volto atrás,
dai-me alento
até ao final
II
Havia rispidez regular
Não era espaço de amar
E ainda assim, o meu sorriso
Esteve sempre presente
Assumo, contudo,
Na solidão e ao meu siso
Negava-me um novo rumo
Alegre é como estou
Se posso agora comparar
Há esta distância toda
o parêntesis comparado
(abri os braços e de espinhos
era a minha coroa)
Milhas da distância do lugar,
da província, noutro
Estado.
III
Sou já outra fêmea,
uma outra mulher
Mar e Yemanjá
Cristo e Lúcifer
sou quem eu quiser
Onde pretendo ficar
Aqui, no lugar onde
Posso ser e sou
As folhas do velho carvalho
Serpenteiam até cair,
Sem amparo no tanque,
Onde um gato ao orvalho
Me olha sedento de mimo
No muro, estanque
Enquanto os meus dedos
Passeiam pelo seu pelo
E um gato vadia lá fora,
Enquanto outro vadia
cá dentro.
IV
No céu chumbo
As nuvens adensam a nostalgia
E o alarme do email
Me traz a boa notícia
E eu agradeço
A realização da prece atendida.
(julgamento é boa profecia)
Devo ter sido ave ferida
E esta dor que trago não é minha
E até as asas são emprestadas.
A chaleira na cozinha,
Os cortinados em rabanadas de vento
E o aroma do manjerico de junho,
Morro-não-morro,
fico-não-fico,
chegando a Dezembro
V
Voltei pro gato na janela,
Ele no parapeito e eu espetadora
O cheiro ao chá de canela,
Neblina, fim do dia, desde agora
Chuva pesada e aqui neste abrigo
Pedia-me a minha alma chá
E uma música se impunha
Neste quarto tão vazio
Do aleatório momento
Dido emprestava o lamento
A ironia presente
Breve o dia do armistício
E do chá misturado de chuva
Bebi dos dois e Purcell,
Embriagado como eu,
Mimava ao gato o pelo
Como a um velho casaco ou
um pedaço de novelo
VI
Perdoava-me todos os dias
Mesmo nos que não chovia
E agora esta magia,
ser agraciada
Reconhecer a dor já fria
Do seu ensinamento ou valor
Por cada amor que se acaba
Um outro deve nascer
Esse outro prevalecer,
O amor próprio, a mim
E quem me poderá julgar
que me importa, já o fez,
À dor retirou o mel e
me curei inteira
E tudo fiz pra que não sobrasse
dor para ninguém
e sobrou raiva, desprezo
vileza e castigo e foi tudo
em dia de feira, numa quarta
que não esta
VII
E o Deus em mim consertou-me
e desfez esse pesar
Refez o que era de menos e
retirou o que carregava a mais
E eis-me aqui afinal.
Nesta janela traseira
Onde os musgos se abraçam à rede
Que separa a vedação do caminho
De servidão.
Os pássaros poisam pra beber
As folhas mergulham sem saber,
No tanque que se faz lago
Neste inverno de estrago
Onde nenúfares dormiriam,
se os houvesse
VIII
Da parede escorriam gotas
Desembocavam tubos
Tec tec ás vezes tic estridente
Da experiência dos sentidos
Na mais simples, mais urgente
mais profana contemplação
Paixão pela natureza
Que facilmente me arrebata
Emoção e liturgia
Ver a vida defronte,
Sentir a árvore, o monte,
Não se deixar perturbar
Devir orquestrado nos Céus
IX
- Maestro, ouço a noite embalar
O meu peito que acalma.
A chuva amansa
À noite não dá descanso
Ouço-a no portão, ao fundo,
No arrastar do tempo,
fez escorrer-me pela pele,
junto aos ouvidos
Sinto-a e embrenho-me nela
Como se de poder curativo
a água me renovasse
Chove dentro de mim
Chove em todas as almas
De todos os tempos,
ébrios malmequeres
pobres narcisos afogados
O fogo aquece-nos depois,
A flauta nativa continua
E a bênção desce à terra.
X
Fomos intempestivos
E provocamos tantos danos
Ao ritmo natural das coisas
Mas essas, quando se lhes mexe,
Algo em si acontece
Que as retira da frequência
Não sendo nada humano
Nem sequer coincidência
Tão logo se quebrem alianças,
Cartas, acordos rasgados
Ou se alinham na alma intenções
Coisas ganham vida
Na parte inerte do olho,
Na palma oculta da mão
O lugar errado, o das coisas
As coisas não deviam ter memória.
XI
Desse lado errado,
Se são gritos são-no,
numa caixa de música
Na borboleta de peito,
No enfeite do cabelo
Em todo o seu potencial
São uma dor miudinha,
Feia, doida e mesquinha
Do canto dos olhos,
dor minha
em espiral, a exigir
ações, o merecido fim,
o tardio final
e trau, atiras o bibelot
contra a fúria do fogo
da lenha, do logro
XII
O amor é um animal
Não se deixa domar
Só a paixão lateja
Só a ferida queima
Só o fim pode exterminar.
O alpendre quieto
As cadeiras de Verão
Alinhadas,
Ainda se lhe adivinhando
o cansaço da exposição
das horas de calor
Sem piedade ou frescura
A não ser na noite escura
E quando chove,
-pois que chova!
Até o alpendre se alegra.
XIII
A imagem é nítida
Na retina,
No papel é memória
Viagem de cinco anos
Pode ferir o viajante
Impreparado e só
Obrigado a viver a história
Não é seguro sair,
Sem caderno ou caneta,
Sem coração, sem ideais
XIV
A parede nua fala de ausência de cor
É uma parede concreta, violeta, quase flor
É retórica mental de página acidental
Todo o resto é amor.
Essa luz dentro de mim
É quem conduz a alegria
O sol no labirinto
Onde antes havia gelo
Substituí-a por calor
Um abraço de opressão
Por um sorriso, estertor
Parede, corrida, água
Pardal, chuva, bico
O restante fui eu que pintei
Libertei em tons de azul
XV
E o coração tinha segredos
que desejavam ver a luz
E ruminavam fechados
No escuro só medravam
A dor da não revelação
Superas, supero
Desapontamento
Transformado,
Larva borboleta extinção
Lamber feridas
Embalar-me
São lembranças passadas.
XVI
Paz, hoje sinto-a
Que me devia há muito
E nela montava agora
Nas insónias raras
De uma noite de
chocolate e licor
que me ofereci, por amor
Que me rendi a perdoar
E perdoei
O muro,
A parede,
As coisas
Perdoei todas as coisas
E voltei ao ritual de me gostar
Afinal, de me deixar mergulhar
E ser pura paixão outra vez.
XVII
São cinco da manhã
Daqui a quatro horas
Toca o despertador.
Ensaio o descanso
Apagar da luz
(acende-se a madrugada lá fora)
O gato serve de travesseiro
E dorme na almofada
Aninhado.
Duas voltas, ao início
Respirar fundo preciso
Luz da memória desliga
O gato abraça-me, uma pata felina
Sobra e cai naquele que foi
o teu lugar
XVIII
Um amansar de fera
Uma jugular
Dois seres dormitam na aurora
Na paz sepulcral de Deus
A flauta permanece
O gotejar amansou
A fogueira continua
No acompanhar do amanhecer.
O dia a arder lá fora
A lembrança do que fomos
No passado se demora
E tudo é grito e lamento
E tudo é tormento
Viver entre a paz e a guerra
E agora, que faço de mim agora?
XIX
Ao longe, as cabras e o jumento
Duas por três casas e o cimento
O concreto da urbanidade
A visão da serra
Ah quem me dera, só a luz
Embrenho-me na poesia
De outros tempos e
de outra gente
E bailo em bicos de pés
Nas marés de um navio,
no soalho de um convés
Na magia de outra latitude,
tenho pressa e sou urgente
XX
Depois que te foste, voltei as costas
mas o amor existia ainda e
não tinha o teu semblante
que esse em mim morreu pra sempre
O amor tinha o meu reflexo,
mais inteiro e verdadeiro
Nesse jogo de dar e receber
Sempre fui a entrega
a paixão, a quimera,
o cálice, a doação e a primavera.
Chamo-me vida, essa é,
afinal, quem eu sou.
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