O cavaleiro da triste figura
O cansaço há-de vencer-me, mas ainda não é hoje, e a sorte há-de rifar-me, mas não foi hoje.
Foi ontem.
Aguardávamos as três pelo transporte. Sentadas e rindo. Rindo para não chorar. O nosso transporte deixa-me quase sempre bem-disposta. O sr. Belmiro. E sempre que necessito dele, marco e geralmente chega antes uns bons dez minutos. Ontem também, nada de peculiar, com o seu olhar longo e intenso de homem que viveu mais de setenta anos a cruzar ruas e becos, cidades e províncias. Amante de história, de biografias de heróis, jocoso e carismático e sempre a tratar a minha mãe por menina, aguardando sempre a resposta dela, homenageando o entendimento das fases de vénus com um respeito cavalheiresco.
Mas esta história não é sobre o sr. Belmiro. Nem só sobre mim. E talvez nem seja, de todo, para mim. Mas vi-o e sem o conhecer, entendi o layer ou parangona do "Universo" e a sacerdotisa que existe em mim, entre dois mundos, entre uma purga e um café, entre duas peles, sendo que somos mais do que fomos ontem, captei os avisos prévios e mais tarde, a sós comigo, no meu quarto museu, lhes agradeci me terem colocado o botão on off do espólio afetivo, para um alargamento de profundidades, um entendimento da sombra. Digo que o reconheci porque me pareceu profundamente familiar. Dentro de mim, sabia-o. A mulher racional e externa, a que aguardava o sr. Belmiro, junto com elas, manteve-se pragmática. Tenho a certeza de que verteram capas dentro de mim, estalando como camadas de cebola seca, porque mesmo sendo pragmática, mesmo sendo racional, totalmente fria e analítica e até distante, nas respostas que lhe dei, eu não o conheço, mas reconheci-o de outras vidas. O dialeto espanhol. O olhar, a presença, mas mais longe ainda, o que pensava e o que pensou ao olhar-me, o calculismo a cair por terra e a terra a tragar-me as certezas. Na altura, antes mesmo de me dirigir para o taxi, logo após assentir para o taxista, em sinal de agradecimento, ter chegado antes da hora combinada, que aguardar é algo a que a minha mãe precisa de ser poupada, respondi-lhe, sei que o fiz tentando ser racional, mas dentro de mim, ouviram-se marteladas, como se dentro de Notre Dame. Ou para ser mais precisa com o background, da Sagrada Família, de Antoni Gaudí, evasiva, mas enfaticamente ousei pedir-lhe o cartão. Precisava ir. Nem sequer olhei para trás. Acomodei a ambas na parte de trás do taxi e sentei-me ao lado do sr. Belmiro. Olhei-o e respondi-lhe bem-disposta que sim, que era outra vez para o Hospital da Boavista. E não precisei de olhar para trás ou para o lado, para saber que, enquanto ele trocava algumas impressões com um careca que apareceu sem aviso e sem convite, eu sentia que ele sabia precisamente que eu o olhava, mirando a estrada, que eu ousei marcar uma entrevista, que lhe disponibilizei o meu contacto, que troquei duas ou três frases, precisas e objetivas que marcaram o final do meu dia e ainda pairam dentro de mim como badaladas ou gongos ou bombas de Carnaval, sem Entrudo. Ele ligou-me três vezes hoje, só lhe atendi ao final do dia, na frente das mesmas pessoas, para confirmar o que ficou agendado para esta semana. No Bessa. Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer, mas não qualquer coisa que não ousamos compreender, mas é que o futuro pode ser uma campainha, um alarme, um caval(h)eiro vindo de terras vizinhas que por via de uma questão, nos traz a resposta que aguardamos há uma vida inteira. E pode até ser escrita uma música para esse dia, em que o futuro nos confirma o que o oito de espadas nos esconde por mais de uma carrada de anos! Mas isso será matéria para mais lá para a frente, se a entrevista me conduzir onde espero. Estou a fazer antibiótico de doze em doze horas e a senhora minha mãe teve alta ortopédica prescrita pelo cirurgião ortopedista mais charmoso de Portugal e arredores.
Um portal poderoso, este, 1111, tal como o quarteto e o el-rei Don Sebastião. Que para mim, virá montado num cavalo de arapuca de justiça, à semelhança do de Troia. Para um xeque-mate sem coincidências. Sheik. Mas não mate!

Comentários