Sem infância, em nome de Deus?
Este texto foi escrito em 2009.
Muitas políticas de proteção contra crianças e adolescentes na Europa. Quais os resultados? O que mudou? E no resto do mundo? Qual a eficácia e responsabilidade? Que ilações se podem retirar, após tantas conferências e abordagens ao redor do mesmo? E o estado das crianças, mudou?
Todas as crianças são inocentes. Até prova em contrário. Todas nascem imaculadas, whatever that means. E, a seguirem percursos culturais europeus, todas sobrevivem á infância e adolescência, com este e aquele problema, com este e aquele desejo, carregando nas costas o peso da cultura dos pais e dos agentes culturais próximos a ela. Se a religião for católica, por certo, seguirão os passos dos pais que, veem, seguindo os passos dos avós, dos bisavós, e daí por diante.
A herança cultural é intergeracional, pois, convivem, simultaneamente, ambas e, às vezes, três gerações, comungando princípios e valores, participando individual ou coletivamente no que existe e é dado como seu. Ela é parte integrante da sociedade. Muitos atingem a considerada maioridade ainda com recuos ao Peter Pan ou Alice no país das Maravilhas. E nós consideramos isso, quando excessivo, estratégias de coping que a criança-quase-adulto adotou pra poder continuar a seguir em frente. Conhecemos casos, pontuais ou não, infelizmente, de miséria e fome que são contingentes a um crescimento saudável, refiro-me aos aspetos físico e psicológico. Os casos de abusos sexuais dentro da família, o silêncio comprado pelo medo e vergonha, a prostituição e a necessidade de se erguerem sozinhos, numa sociedade mais ou menos católica, mais ou menos egoísta e centrada nos valores capitalistas e hipócritas. A Europa vomita constantemente pelos media estes vernizes e, neste momento de crise ou rutura económica, mais se evidenciam e se tornam "vulgares" tais casos. O moralismo grita sempre palavras de ordem que alimentando a estrutura da miséria, não se compadece dos indivíduos, famílias ou classes. A criança europeia tem uma comissão a zelar pelos seus direitos. Esta criança não pode trabalhar, não pode ser explorada, não pode ser assediada ou abusada. A nossa criança pode brincar nos jardins infantis, sob o olhar cuidadoso das suas mães ou baby sitters e fazer birras, pedindo isto e aquilo. Á criança europeia é-lhe concedido o que é seu por direito. O direito de crescer com expectativas de futuro, com objetos de apego e satisfação no presente, com álbuns de fotos e outras lembranças suaves a marcarem um passado de família e laços afetivos.
E na vastidão do mundo, onde há de tudo, abutres e cisnes, edifícios e monumentos, ex-libris e passados históricos de renome, outras pessoas e outras culturas, lá, noutros meridianos, onde o corpo humano se compadece na dor e se rejuvenesce na vida de sol de todos os dias, lá onde conhecemos de localização geográfica no mapa mundi, lá as crianças ajudam na economia, sendo açoitadas até fazer ferida, criando sacos, fabricando tijolos, erguendo casas, apanhando fruta e ópios, esmagando sementes e, ao fim do dia agradecendo o espaço onde dormem acocoradas umas ás outras, entregues a si mesmas, órfãs de pais e de religião, sequiosas de infância e de humanidade; ficamos chocados, mas vão morrendo todos os dias, snifando cola, ás mãos dos chicotes, dos abusadores, da pornografia infantil, umas vezes morrendo e outras matando pra não serem mortas ou pra apaziguarem a raiva dos adultos... Crianças que num dia aprenderam a soletrar as primeiras letras por imitação e no outro, conheciam o patrão que lhes dispensava uma malga de água com lentilhas e açafrão e uma manta fina em meio a tijolos onde descansar 6 horas. Estas crianças não têm nome, nem código postal, não existem burocraticamente, não possuem vínculos ao estado que as explora, não conhecem amor nem brincadeiras, nunca ouviram falar da Barbie, do Ken ou da Bruxa má. Nem sabem que noutros hemisférios existe infância. São vítimas todos os dias enquanto viverem, da ganância, da inveja, da raiva e do ódio, da diferença e da escravidão, da cultura e da religião. Nasceram em países errados em horas erradas em tempos de desumanidade e pra elas, circunstancialmente, empunhar uma arma agradando aos seus superiores, assemelha-se a fazer os deveres de casa pra poderem usar o pc na nossa cultura. Já crescem mendigando o ódio. Acredito que desconheçam existir formas de vida diferente. Aquilo é vida no mais básico. A única que podem ter. E não há Cruz Vermelha ou Médicos sem fronteiras que os faça renascer. Obedecem às condições e circunstâncias criadas. E nós, observadores passivos, discordantes e moralistas, nós que só conhecemos o lado de cá, a nossa discórdia vale zero. Porque enquanto existirem crianças sem infância, todos seremos culpados e cúmplices desta desenvolução. E depois disto nada mais me resta senão levantar-me e chorar, obedecendo ao impulso da impotência e da dor sentida pela voluntária pelos voluntários mundo afora, nesses mundos em que ninguém, na Europa, conhece verdadeiramente. Logo, essa realidade nem existe.
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