Sérgio Xarepe
As cartas escrevem-se pelas paredes
As cartas escrevem-se pelas paredes.
Deixei que os vizinhos saíssem primeiro,
antes de toda a gente, como se eles não fossem
o que são, quando eu durmo.
Uma coisa é vergar uma barra de aço,
outra é acordar o que não dorme.
Como dois olhos inúteis, assim se
viam as minhas mãos, quando a casa era
estéril e a música não tocava.
Em todos os corredores, uma marca
de fogo nas paredes, ardendo como água,
calcinando as memórias que estendi
por elas, de alto a baixo
um papel de parede longínquo e
absorto de mim próprio.
Ensinei-me a ler para conseguir
que as tuas cartas fizessem sentido,
quando mas mandavas:
estendia à luz aquele papel azul,
com enfeites de uma só cor espalhados
aleatoriamente pela folha - no meu tempo
não entendia nada
agora quando olho para a folha
consigo ver-te.
E mesmo assim parece que continuas sem
me responder. Os dias semeiam-se entre as
minhas palavras. Não acaricio o rosto já, com medo
do que vem depois.
Parece que as mãos se tornaram pedaços de
ferro, frias, sólidas - já não se desfazem
enquanto te escrevo a carta:
Ontem foi um dia tarde demais. Ontem, as crianças
jogavam no parque.
Hoje, se retornar, não estarão mais lá. Saíram
sem aviso, foram-se embora, cansaram-se de tanto
olhar um pedaço vazio de mundo, onde velhos
se contorcem para fingir que ouvem, enquanto se
deleitam com retratos a carvão e palavras
sem sentido.
Tudo lhes causa transtorno, nos dias que correm.
Outro dia, foi um jovem que se perdeu. Pegou nas
coisas que tinha, zarpou mundo fora como se ele
ainda existisse - sem medo.
Mas outros dias há muitos. Jovens que partem
há-os todos os dias, nós é que nunca os contámos.
E eu nunca parto. Fico sempre aqui, de mochila às costas,
sobretudo na mão, o livro na outra, e uma carta
na algibeira, de tinta já gasta e envelope
um pouco encardido.
Por isso mesmo, quando me preparo para partir,
sento-me - como se estivesse a curar um cansaço que
ainda não me tomou.
Como se as minhas mãos já tivessem escrito milhentas
páginas de coisas sem sentido, de textos sem
morada ou sem remetente definido - enfim, coisas.
Coisas como as praias. Praias como coisas.
Textos como poemas. Poemas como não-textos.
E barras de aço sem sentido. Daquelas que quebram
ao mínimo toque, mesmo que seja uma carícia. Mesmo
que as nossas mãos se unam e encenem um gesto
meigo e lento - como a nossa face a olhar o mundo -
como o mundo a perder-se lentamente pelas pálpebras
que já não se fecham.
À noite é quando tudo se junta dentro de nós,
e se estende pelo chão. Aí, cria-se ininterruptamente
uma vontade de varrer o soalho para que nenhuma
outra cara grite mais, como se as paredes tivessem
vida e nós não.
As cartas escrevem-se pelas paredes - é esta a verdade
que o mundo segura. E as chamas de isqueiro todos
os cigarros todos os acidentes todas as nascenças
mortes descalabros guerras balas tudo isto
tem um sentido
mas o dos textos, esse, ainda o procuro.
Por isso é que escrevo cartas, ainda que só hoje
tenha aprendido a ler as tuas.
in Confluências.
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