Equacionar sem manchar Morris, Frida ou Nina


Sentimentos. O patamar das emoções (e)levadas ao pensamento racional. Ao equilíbrio necessário. Num departamento ao qual não escapamos enquanto seres viventes, discernentes, conscientes e, por último, mas não menos importante, expressivos.
Dizer sentimentos pode ser, eventualmente, atirar palavras como se fossem pedras, paus, pedaços de emoções que ficaram na glote, mal digeridos, digeridos arduamente, sem compreensão, imaturas ou, por outro lado, bem amadurecidas que se expõe de uma forma inequívoca, porque já tiveram tempo de ser pensadas, organizadas, sem dúvidas, de transformarem emoções em sentimentos, atingindo um auge, pesadas na balança de um tempo que deixou que o limoeiro se transmutasse, que o azedume ganhasse patine, amarelasse, mostrasse a cor da madurez, da plenitude, do trabalho elaborado. 
Não sou refém das palavras, nem do que me provocam as mesmas na boca dos outros, ou dos atos que as acompanham, não quero ser refém de nada, daí equacionar a vida enquanto processo de liberdade expressada e partilhada. Na minha mente (que mente para alimentar o ego) existem caminhos entre sinapses, gastos pela experiência de levar e elevar, de equacionar e triangular o que os outros e os seus atos provocam em mim. E os meus próprios. Sou o sujeito e o objeto primeiro das minhas reflexões partilhadas, dos pensamentos, sejam exatos ou que se pretendam sê-lo. Alguns deles decorados, simbolicamente guardados, sem necessidade de nos exigirmos despender energia no percurso, por o mesmo estar resolvido dentro, em nós. Medimos, pesamos, amplificamos, metemos lupa, distanciamos, adicionamos razões e motivos, pensamentos e suplementos conjunturais ou estruturais, leveduras e fermentos, a olho ou medidos na exatidão da nossa exigência. Alguns de nós volta aos lugares, aos momentos, munidos de recursos estilísticos e outros; e outros de nós fazem o inverso, tentando esquecer, tapar os olhos e os ouvidos do campo emocional, ferido, desatento, embotado, atento, magoado, constantemente esgrimido, persecutoriamente adiado, desvalorizado, impedindo que a balança com as suas formas de osmose chegue ao cerne, meça a ferida com exatidão, meça a intensidade, o apego, a inclinação que, pode ser suave ou temperada, apaixonada ou de grande magnitude, obsessiva ou compulsivamente a nossa forma de chegar lá. Ou de não chegar de todo.
Todas as perguntas podem abandonar-se à sua falta de resposta e todas as respostas podem ser abandonadas à especulação. Somos nós, em última análise que fazemos o trabalho de casa interno da fundação selfiana, seja para nossa evolução ou involução. 
Um cérebro que não pratica exercício entre as sinapses neuronais, para além de, que não indaga e persegue os seus quês, nunca chegará aos porquês das respostas. Ou se o fizer, será um acaso. Que não fazer nada é resposta e não há acasos. Ou há o que conceberem para vós mesmos. As circunstâncias promovem ou não (se não quisermos que o façam) a aprendizagem que deveremos fazer, sobre essa grande questão última, para mim, que viemos nós fazer aqui e de que forma o estamos a fazer. Seria ridículo, infantil, imaturo, pensar-se que todo o trabalho interno não necessita de foco, de investigação, de estudo, para descobrirmos as motivações mais profundas do ser, as suas naturais inclinações para este defeito ou para aquela virtude, que os dons que nos são inatos devem ser abandonados aos acasos ou circunstâncias vitais de cada um. O trabalho é nosso, se nos questionarmos, se houver em nós a intenção de entendermos a questão essencial. Esse eu que afeta o eu dos outros nos mais variados contextos.

Aquele sujeito, naquele momento saiu do bar, da escola, do aeroporto, de casa e, descendo as escadas, a ebulição afetiva do momento, dirigindo-se ao porteiro, à balconista, à esposa, ao pai, profere duas palavras que saem como uma implosão, eu quero morrer, ou então, vou matar todos os que se encontram aqui, ou eu só queria uma oportunidade para mostrar do que sou capaz, quem sabe, uma segunda oportunidade que se traduza na razão real que me trouxe a esta dimensão da experiência da vida, deste jogo, ou olhando a esposa diz, tentando afunilar o pensamento para que o discurso não perca coerência e ganhe a impedância que ele necessita, já não te amo, olho para ti, sei porque fiquei contigo naquele dia, naquele ano, naquela sexta feira, ainda me lembro a cor do teu vestido ou das tuas calças, ainda me lembro que chovia, que tinhas perdido a inocência, o comboio ou o livro ou a paciência, que o beijo que te dei ou o abraço que me deste era inteiro e tudo o que necessitava naquele momento, mas também sei, agora que te olho, porque o deixei de fazer, talvez tenha sido o cansaço dos anos, o peso dos fins de semana, a rotina entre nós, os silêncios ou a tagarelice, ou se calhar os amigos, ou a falta de amizade, ou então foi a ternura que dispensei a outros, ou a exaustão de não me entender, ou então foi a trovoada que existia em mim da infância triste, ou qualquer absurdo que não pude prever ou prevenir, que não quis fazê-lo ou dar-lhe continuidade, e olhando a cara dele, dela, do outro, a minha própria, dizer que afinal o meu amor cresceu ou explodiu em partes, ou desapareceu de cena, ou como podia amar-te se não o faço comigo, ou que o teu corpo não pode dar-me mais a realização ou o preenchimento a um sonho que me nasceu novo, de novo, maior, menor, mais urgente, a um pensamento recorrente, a uma ausência de satisfação e tudo o que digo, ou que não te tinha dito ou que quero dizer-te pudesse chegar a ti como uma boia a um náufrago e que, ao invés de te matar a ilusão, ou a esperteza ou a simulação ou a fantasia ou o sentimento de esperança que trazias como naquele domingo em que te conheci, ao invés de nos matar ou comprometer a nossa relação, a nossa vida, a rotina bem medida e preterida por ti ou por ambos, nos estivesse a salvar das mentiras que se enroscam em nós, como vassouras cheias de piaçás ou esfregões que se tornam inúteis e gastos, espinhos de rosa que acontece não se terem equacionado tocar, pisar, passar os dedos e ao invés de te ferir, me ferisse, nos ferisse a ambos e precisasse, de ora em diante, estudar todas as formas alternativas, aleatórias, disponíveis de não te magoar, ou de enfermar a ambos ou a todos, quando sopro as palavras sem as ter passado antes pelo crivo do sentimento, que isto que sinto não é só fruto da insónia, ou da irritabilidade, da ignomínia ou da má sorte, que isto que te digo agora, e que tem o condão de retirar estrutura, alterar futuros, emagrecer a esperança que cultivamos, pudesse ser a semente da claridade e da compreensão, assim como dizer maçã e ser verde e doce como eu gosto, sem o elemento da imprevisibilidade que a vida traz, um bicho que, mesmo sem ser de seda, possa ceder, ou mudar o meu apetite ou a sede com que te olhava, ou oferecer-te a palavra cacho de uvas e não haver neles um grão ou pevide que te incomode os molares, ou dizer-te que ainda gosto de te ver sorrir, não obstante não sentir a paixão que um dia aconteceu ao toque da tua mão, quando os pelos dos teus braços rasparam, sem querer, por querer, sem vontade, ao acaso, as minhas costas, o lóbulo da orelha, o meu pescoço, quando as tuas mãos pareciam ter o tamanho necessário para os abraços que tinham o meu nome, e se encaixavam, dedos com dedos na parte boa da vida em comum, dizer-te, em substituição que ainda estás mais bonito ou bonita, que já não és tão atraente, ou tão teimoso ou tão arrogante, ou que mentes menos ou que sempre dizes a verdade para não te ferires ou que usas da manipulação para atingires o que pretendes, ou dizer-te que a vida trará outra maneira de vermos o assunto, o problema, de resolvermos esta equação de falarmos, de usarmos o diálogo como forma de seguir em frente, mais bem resolvidos, que os silêncios que antes eram consentidos e lidos na horizontal já são mal queridos e nada entendíveis, que tenho ainda comigo, a servir-me de marca-livros a flor que me colheste, naquela segunda feira, quando acreditava que a minha vida não fazia sentido e, quando cada pétala da flor que me colheste trouxe um significado mais amplo a essa frase, e reformulaste tudo de novo, trouxeste o avesso e eu vi que era esse lado que estava certo, o certo em mim, que era nem precisar de dizer palavras, ou dizê-las depois de saboreadas e pensadas, que bonitas são as palavras de todos os dialetos quando expressam exatamente o que pensamos e sentimos sem pretensão de enganar, sem a vaidade de se tornar um refrão poderoso ou um haiku. 
Devolvo-me todas as deixas, sem esmagar nada, ainda inteiro, ainda cru, o teu discurso na minha boca, as palavras proferidas, levianas ou intensas, a tua boca formulando e debitando palavras e fonemas que se condensariam numa folha, numa página inteira, na parte do diário deste ano, talvez deste dia ou de outro, querendo ser integradas e pensadas, analisadas e reformuladas e, mexendo com as minhas emoções, que todos sentimos as emoções de maneira própria, como as aprendemos quando crianças e, ao me dar ao trabalho de saber o impacto que produziste em mim, ao dizer-me tudo isso, ao fazer-te tudo isso, pudesse olhar ao espelho o eu, esse tu que carrego, que carregas para todo o lado, lhe rompesse, lhe lavasse a maquiagem, a máscara, a simulação, lhe retirasse o creme de proteção e dissesse eis-me aqui, eis que todo eu me integro e sou este e me aceito e me amo como sou, ou o contrário que seria dizer que não gosto do que senti ou que sinto ou que não quero voltar a sentir esta parte de mim, esta resposta involuntária, esta tormenta de emoções misturadas e incompreendidas, que, como dizia o outro, compreender é meio caminho andado para resolver, como o código postal que é meio caminho andado para a direção correta das coisas e, se bem me lembro, todas as coisas podem e devem ser nomeadas, mesmo quando dói, sobretudo se doer, mesmo que seja a verdade, sobretudo quando é a verdade. Não há espelhos que devolvam o nada. 
O nada é, tal como a morte das coisas e das pessoas, a grande invenção, depois de terem inventado o homem e a sua necessidade mesquinha ou grandiosa, pequenina ou cheia de valor de encontrar o cerne, o cume, o ápice da real razão dos desentendimentos entre os seres humanos. Que no reino dos vegetais e dos minerais, no reino dos animais, esse ápice é qualquer coisa como agora, o já, o presente, o ser e para se ser basta ser-se e fazer-se exatamente como somos, sem máscaras, sem embelezamentos, sem necessidade de escolher o que mais se adequa a esta resposta. Não estou a abolir a racionalidade, estou a dizer que é através da racionalização e da aprendizagem sobre quem somos que nos vem a mais-valia de alterar o rumo, os rumos, os caminhos, os valores, os problemas, as complicações que advêm da falta de estudo, clareza e verdade que se somam na equação dos relacionamentos, de quaisquer relacionamentos e para começar, connosco, essa forma de olharmos o outro e criticarmo-lo sem o exercício de o fazermos primeiro em nós. 
E então, eu atento na composição de Morris Albert, esta composição pela qual sou apaixonada, cada nota, cada acorde, cada intervalo musical traduzem o que tento fazer, desde sempre, comigo, que a vida é um carrossel de emoções e sentimentos, nem todos bons, nem sempre maus, tão vivos, tão cruéis ou tediosos e entediantes ou gratificantes e impulsivos, que a equação se simplifica quando deixamos de lado as diferenças e apostamos na verdade, a de não sermos iguais e usarmos a verdade como o dialeto favorito para o entendimento e causa comum. E então, oiço a voz da Nina Simone, pelos dedos da Frida, tudo o que Morris disse e que eu digo ou quero dizer é que a expressão dos afetos que nos movem e comovem pode ser a mais bela arte de todas, denunciando o ser humano pelo seu lado mais fiel, das dualidades mas inteiro, sem ter que omitir nenhuma das suas partes e que o diálogo interno com o self nos conduz a esse exercício de nos modificarmos para melhor, para o bem da maioria, começando sempre em nós. Porque me amo, posso amar o outro. Da forma mais humana e saudável, sem ocultar, sem véus, sem maquiagens, sem negação das partes que vivem em mim. E o rio da vida vai alargando margens até subir ao dorso de si mesmo e ver que, quando era gota, já era mar, que sendo mar, tem mais poder criativo, mas que nada pode anular a sua essência de ser inteiro e se render ao que veio fazer. Amar-se a si e às outras partes. Aos outros. Que são tudo parte dessa gota que cresceu rio e se fez mar e se uniu ao céu e olhando-o, pôde refletir estrelas. Estas estrelas, no meu céu, no meu espelho, são os ancestrais, os anteriores a nós que nos trouxeram no seu dorso e nos espreitam do céu, aguardando que o jogo da vida se cumpra, da mais ínfima até a mais íntegra regra: quando me cuido, quando me aprimoro, estou a cuidar os outros, cumpro-me para ver o outro cumprido. Sou o exemplo, não para criar protótipos, mas para me cumprir e, quando o faço, estou no cumprimento do bem coletivo. E para rematar o que acredito ser extenso e com partes por contemplar, que eu sou assim, imperfeita e autêntica, que me permito essas esquisitices, diria que enfermamos na vida quando os afetos e os pensamentos não são equilibrados, quando desconhecemos ou preferimos não estudar o motivo das nossas inglórias emoções e pensamentos. A enfermidade é a deformação que não acrescenta nenhuma vírgula ao bem coletivo. 
Assim, prefiro terminar com o pedaço da torta na parte do meio em que me dizia, antes de ganhar coragem para te dizer a ti, que tenho pensado muito e sentido outro tanto e que não lamento que a nossa régua não tenha medidas padronizadas nos afetos, porque se eu sinto saudades de ti no presente, ainda posso alterar o que sinto, através do pensamento que me permito a mim mesma e digo saudades e, afinal, lembro-me do Represas enquanto cantava o feiticeira e descia com as costas pela parede abaixo, e com o copo de coca cola com whiskey entre os dedos, as pedras de gelo a soarem a continuação do contentamento na voz dele, sussurrando as estrofes que guardei na algibeira para te recitar agora, enquanto o Miguel Nuñes escrevia nas notas do teclado e o baterista de jazz atribuía, com as baquetas , a secura que misturava o som doce e triste das teclas à voz arrepiante do vocalista, a precisão, o entalhe, a eficácia e a comoção do quanto, olhando a cena, sentiria falta, dessa presença constante que eras tu na minha vida, feiticeiro, tendo vindo aninhares-te ao meu lado, dessa forma tão intensa e inteligente com que transformaste a nostalgia do passado no futuro promissor do arredondamento e, do diálogo interno em que teço as palavras para que possas, com o teu multímetro, medir a intenção dos voltes faces que fizeste na minha vida, a resistência em omios da minha capacidade de amor incondicional e a corrente invisível de amperes que nos une, apesar de tudo, desse não quereres, desse crer tão meu!

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