O mar na voz do silêncio

 



Escrevo-te mais uma vez. Estou na margem do precipício há tanto tempo que o próprio relógio deixou de ser preciso, para que possa ser exata. Enquanto as lágrimas tomam conta de mim, enquanto os soluços me sacodem o corpo, fumo mais um cigarro, silenciando a dor que tento vomitar nos novelos de fumo que vejo afastarem-se pela janela e subirem a níveis superiores, agora que não tenho asas para os alcançar, largo-os desesperada, esperando a tempestade que oiço bramir, que sinto aproximar, que num ângulo cego deste momento sei que vai chegar. Escrevo-te, mais uma vez, como se fosses ler aquilo a que não dou seguimento, que fica rascunho em mais esta página ou noutra. A estupidez humana e o seu desespero na mesma onda, pronta a ser editada e publicada para uma nuvem que dizem ser segura. Na minha prece, não te agradeço me ouvires, nem me responderes, que o fazes de mil e uma maneiras, mas antes exalando o sabor amargo da derrota que me mantém de pé, as escoriações que me fazem resiliente, os sonhos que manténs dentro de mim. Eu, que me coloquei como a cesteira da montanha, como a ermita na selva urbana global, que sinto mais tristeza pela espécie humana do que no dia em que nasci ou até no dia em que senti o teu abraço cobrir-me de amor. E peço-te, olha o meu atrevimento, entre toda a dor que me arqueia as costas, que me definha entre as mantas e me acocora os gritos no silêncio brutal, peço-te, pai, imploro-te que não me deixes ver a triste inglória do desfecho carnal, não me faças isto, meu pai, não me deixes, mais uma vez, observar o fim de uma vida cheia de conquistas e sorrisos e sonhos, definhando agora. Pai, a miséria humana sobe através dos pensamentos dos tristes e dos agoniados e chega a ti, tal como chegam as preces e a vontade hercúlea de manifestar impossíveis. Essa onda de dor e de abandono não deve misturar-se e contaminar os sonhos dos mais jovens, não deve cruzar-se entre mísseis e drones, entrando em hospitais, onde mutilados se agarram às próteses como a esperança de acordarem no seu próprio lugar ao sol, nem devem manter as malgas vazias dos subnutridos, pai, para onde vão todos os sonhos dos que morrem mendigando algo? Não pode haver um país onde todos os que sofrem se possam unir, se possam entreajudar a erguer casas, diques, jardins, a semear culturas onde a fome esteja proibida de entrar e a paz seja obrigatória? 

Acordei, sem nem saber se dormia ainda, ouvindo a bengala tatear o soalho de madeira, impulsos humanos e a respiração entrecortada e corri, sem nem saber se tinha pernas, para encontrar o corpo já caído, no banco, abafado o seu estrondo pelo plástico do mesmo banco que ali deixo na saída do quarto de banho e que hoje serviu como bote salva-vidas. E lá estava o olhar vazio e quase ausente da que foi, outrora, fonte de vida, outrora vida, outrora fonte, as faces desenhadas da angústia e da incapacidade, um pedido de auxílio (chame-me) que se esqueceu de sair pela boca, talvez pela dificuldade respiratória, ou talvez por orgulho, ou talvez por não querer incomodar. A mãe que me deste, exausta pelo simples esforço de se manter em pé, nem bengala, nem esperança a susteve, apenas o banco a ampará-la. Cortei-lhe os cabelos, tal como me pediu, parece menos magra, parece menos doente. Mas são tudo aparências. Continua a ser débil, vulnerável ao limite, mortal quanto baste, para que, sem querer, um soluço esgace a minha glote e me empurre para a negação deste desmontar do que foram sonhos e realizações. E tenho te pedido tanto, depois de ter sido testemunha ocular e física da morte do meu pai, não me permitas observar a minha mãe partir, não me consagres a mim assisti-la na sua última respiração, pai. Não me despenhes do abismo onde me encontro, tão sem forças quanto ela, perante a angústia que sempre me acompanhou. Ou então, pai, ou então duplica a minha força, dá-me coragem, nunca fui boa na morte, pai, porque me testas assim? 

Vejo-a sossegada, dormitando, mexendo-se, como se o gesso não lhe pesasse. E vou urdindo tarefas rotineiras, afastando as lágrimas para o sorriso que ela me conhece, inventando outras tarefas, mas é tudo lento e vagaroso, como se houvesse um véu que me não deixa apressar os passos, como se o que vivo fosse já a queda, em slow motion, e parece-me ouvir-te dizer: Tu tens força, tu podes, tu resistes, tu que te desenhei para tudo isso e muito mais! Mas pai, esse véu é a ilusão de querer manter viva, a qualquer custo, a esperança, não o fim das eras, não a finitude dos corpos, menos ainda a incompreensível parte em que assistimos à partida dos nossos heróis de infância. 

O envelhecimento é um processo a que só alguns conseguem escapar, iludindo os deuses, escolhendo alturas impróprias para a desmaterialização, apanhando desprevenidos os deuses entre pequenos-almoços tardios ou finais de ceia preguiçosas. A esses, não lhes é dado o infortúnio da prolongação, do arrastar das horas a calendários pouco ortodoxos, a esses lhes é poupado o sofrimento do desfecho dos outros que acumulam séculos nas costas, partem leves, por mais brutal tenha sido o remate final. Escusam-se às filas de cumprimento de tarefas vitais, como criaturas rumo ao matadouro. Foi golo na baliza da vida, que é, afinal, a grande ilusão, nesse golo ascendem, sem sobrecarregarem pensamentos de como seria. E não pode ser a pedido. Porque, pai, tantas vezes to pedi. Em oração. Nas minhas urgências, o hedonismo há-de sempre sobrepor-se ao esvaziamento da dor, ao esquálido mirrar da fé. 

Tudo chega a seu porto, num calendário impróprio a humanos, conhecido apenas pelos que escalam as estruturas entre mundos, que as almas sem corpo caminham entre vidas, acompanhando-as entre os escombros e os despenhamentos, entre os assombros e as paixões concretas da carne. Cheguei a ver almas, esses corpos de luz acetinados e translúcidos abraçarem corpos abandonados e inertes, que miravam o longe, sem sequer verem, nos mares revoltos dos seus pensamentos. A mim, chegaram a dar-me a mão e a fazerem-me caminhar, quando tudo o que queria era a alegria da inexistência, a proximidade de ti. 

Disseste-me, há muito tempo, que existia um contrato que eu deveria cumprir. Continuo na senda do seu cumprimento, mas não me disseste que a angústia, a dor que me levou ao teu colo, haveria de agigantar-se, como essas ondas de tsunami que são paredes e muros a esmagar a nossa vulnerabilidade humana, esqueceste de me dizer que os soluços que me acordam durante a noite e me impedem de conciliar sonhos e pesadelos na mesma cama, haveriam de se tornar insuportáveis a ponto de me inflamarem a fé na humanidade. Pai, nada se extingue, que os teus mistérios se adensam, que as dualidades permanecem e os finais são recomeços, aqui e no além. 

O ouro purifica-se no fogo. E tudo arde, em chamas, colinas de fumo e de combustível fácil, brincando com o ar corrente, dançando com os ventos, ameaçando tudo em volta. O sofrimento é o patamar de elevação para a compreensão da vida e das suas reminiscências. A voz dos ancestrais a sobrepor-se ao que tomamos como matéria não inflamável. Eis que iremos além, cumprindo o manuscrito da vida. O sopro supremo do eterno retorno. O ouro que provém da dor e da sua compreensão. 

Esse ouro não é material, senão a imaterialidade do todo. Seremos sempre o que foi, o que é e o que será. Manifestações evolutivas da luz rasgando por entre as trevas. 

Depois de ouvir o vento montar no rugido das ondas, como cavalos de crinas líquidas, depois de apagar a nicotina que me faz companhia e me encurta o sopro, também eu monto no dorso da noite, junto com o alprazolam e a aspirina e tento chegar ao triângulo da minha própria transcendência, abandonando o peso desta angústia que é a insignificância da mesma, face à dor existente no mundo e, ainda assim, dentro do peito carrego a luz que retém o teu amor e a minha fé no depois. E chamo o teu nome, até adormecer, em prece. 


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