Cristina Guedes







Por um punhado de lágrimas



A driblar palavras era rápido e se fossem amargas, a tarefa facilitava-se. E a mim fazia-me tanta confusão ver essa facilidade com que derrubava pessoas. Preferencialmente os que mais amava. Sílabas eretas, não havia gaguejos e nem hesitações. Dir-se ia que nascera provido de todas as más-criações. Ferir, achava ele, seria levantar um braço dos seus, de homem de um metro e noventa e empurrar um prato de sopa insosso. Ou esbofetear as costas de um amigo, como quem diz: olá bom dia, já por cá? Ou mandar-se contra um condutor que cometesse um erro contra ele ou contra outro, perto de si. O carro virava do avesso, impedindo a fuga do homem e depois era um ver-se-te-avias até a polícia chegar e convencê-lo que a violência não dava respostas às injustiças do dia-a-dia.

Sensibilidade era palavra fora do seu ãmbito. Se lha dissesse, remataria: Acabemos o palavreado, afinal sou esperto mas estrangeiro ou paneleiro é coisa que não! E levantava-se, vencido, fugia ermos adiante ou portas afora. Investiguei sobre a vida dele. Mais do que familiar, era um homem de boa aparência, bons modos e melhor coração. Era assim que o lembrava na minha infância. Alguma coisa sucedera pra criar tanto azedume. E acontecera. Fora despedido da câmara de uma forma injusta e sem muito que pudesse fazer. Pai de dois filhos e de esposa doméstica, a família dependia do seu ordenado certo.

Como se isolava muito e era possante, todos receavam tocar no assunto proibido. Não fosse a Maria ser agredida verbalmente à conta disso. Nunca mais ninguém o viu num compromisso profissional. Fazia uns biscates, era bom de mãos e de ideias. Um excelente artesão, um artista. E não sabia obedecer. Nem mandar. A esposa começou a trabalhar aos dias, para aguentar as despesas, depois dos filhos casarem. Hoje ia fazer limpeza em casa da dona Fernanda, amanhã passar a ferro pra casa de uma vizinha. No dia seguinte, pra Lousada ajudar a costurar cortinas num atelier e assim levava a vida, ela. Ele com os seus biscates ganhava o suficiente pra si mesmo, prá gasolina que gastava, ora no trator ora na carrinha, pra comprar uma nova máquina ou comprar mais um animal. Estimava os bichos. Dizia-se que tratava melhor os bichos que a família, depois desse incidente. Falar pouco falava, a não ser com estranhos se a situação o exigisse. Com a esposa em casa, grunhia qualquer coisa, mas pouco, o suficiente pra ela saber que era infeliz e assim continuaria. E tal criou o efeito bola de neve. Um dia ela chegou a casa e encontrou-o de bruços, deitado no corredor, ainda com o anorak vestido de ter vindo da rua. Dizia o sr. João que saíra da beira dele bem-disposto. Mas o sr. João não sabia que ele tinha vindo mais uma vez da câmara, de ter esperado solução para o problema dele. Não havia soluções e ele jurava que era complô contra ele por não ser do PSD. Políticas à parte, o remédio de escaravelho tinha escorrido por entre as paredes da casa até chegar à cozinha. Maria sabia que aquele cheiro era estranho e horrível. E quase a impedia de falar, secando-lhe a garganta.

- Fernando, Fernando, gritara-lhe, mas o Fernando não estava lá, só o seu corpo bruto e difícil de arrastar. Maria gritou o que pôde que, a sogra que morava de frente chamasse os bombeiros. E essa tivera sido a primeira de muitas outras vezes. A última levara Fernando a ser internado no Hospital Magalhães Lemos. E a ser transferido para o hospital da área, na enfermaria de psiquiatria. Num tempo já recente, onde as pessoas aceitavam melhor que a psiquiatria era o mesmo que outras especialidades humanas e não um sítio onde se escondiam loucos que nunca mais eram recuperados. Pra Maria, as tentativas de morrer dele já eram o fado que sabia ser seu, mas que nunca se habituara. Quando saía para o trabalho, achava que aquela seria a última vez que o via vivo ou normal, sem estar chumbado de medicação. O azedume dele viria dos meses deambulando pelos corredores dos hospitais onde outros como ele deambulavam? Não, o azedume tinha vindo da injustiça, do desemprego obrigado e injusto. De não saber como governar uma família que tivera sido sempre a sua responsabilidade. O facto era que Fernando sabia fazer de tudo, tinha habilidade para trabalhar com madeiras e até fazer esculturas e pintar. Também sabia tocar instrumentos musicais, reparar automóveis, fossem quais fossem as avarias, lavrar o campo, construir casas e fazer de conta que a vida não era difícil. Mas acarinhar, fazer um mimo ou falar com doçura eram coisas de uma dificuldade tal que preferia morrer. As pessoas não entendiam, pois, educação não lhe faltava, era culto o suficiente, lia o jornal com frequência e via todos os dias os noticiários, os debates, os programas culturais. O amor era-lhe a tarefa árdua e impossível. Porque provinha da confiança e isso ele perdera muito tempo atrás, confiança na humanidade. Anteontem, arranquei-lhe meia dúzia de palavras menos agressivas, mais doces e uma lágrima. Depois fugiu, escondido entre os seus medos de lhe ler a alma e a raiva de não saber enfrentar o amor e retribuir.

Comentários

Cosmunicando disse…
e como pode ser difícil o amor...
maravilhoso texto, Nina.
Nina Owls disse…
obrgd Mercedes
Unknown disse…
Olá Cristina,lindo texto o teu...Só hoje é que tive opurtunidade de vir pesquisar e arrepiei-me ao lêr.
è como tu dizes por vezes nós é quem complicamos a vida e tudo que nela rodeia.
uma beijoca para ti e toda família e tudo de bom
Nina Owls disse…
é, somos bons a fazer complicómetros...
lição a tirar: não complicar e tirar partido do que temos. Parece-nos ás vezes ser pouco, mas com pouco se faz muito.
Beijo

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