Em jeito de monólogo mas sabes que é para ti






Recorrente. Porém, definitivo.
Os afetos transbordam. Ainda que os queiramos açaimar. Controlar, educar, restringir e tantos outros vocábulos que pretendessem o mesmo. Eles são água que escoa por entre os dedos, que se reúnem, cavando na terra, nos pisos mais rugosos, nas arestas invisíveis, sulcos perfurando os sentidos em volta, contaminando positiva ou negativamente os órgãos que lhe estão próximos, as coisas, os lugares, tingindo dessa cor única as pessoas, que carregam sonhos, pueris ou não, que carregam motivações, caracteres próprios.
Não adianta fugirmos de um afeto, onde quer que vamos, por mais mapas que se inventem, por mais coordenadas que se alterem, eles vão e são a continuidade de nós mesmos. E podem transmutar-se na distância, ganharem aparências fabricadas, imagens surrealistas, aspetos esteticamente possíveis de tolerância. A isso devemos a nossa inteligência adaptativa. E ao jeito de Kafka, metamorfosearem-se de ódio, raiva, desinteresse, desprezo, orgulho, distanciamento, frieza, arrefecimento, apatia, nostalgia, encantamento, brilho, acrescento, curiosidade, paixão, saudade ou desejo. São as faces dos afetos, em qualquer geografia que nos procurem, serão estes afetos, de que somos feitos, que encontrarão. Nós mesmos, nessa busca ou fuga, direta ou indireta, sofrível ou desejada. E somos todo o resto que está implicado com os afetos, a pessoa que se quer realizar profissional, social, económica e essencialmente. E dependemos todos da mesma fonte, a fonte da vida.
Diz-me a experiência dos meus 40 e poucos anos que quando se dá o caso de duas pessoas felizes, consigo mesmas e com o que as rodeia, num universo vasto de milhões, se cruzam e se intercetam e tudo se conjuga a uma complementaridade de pontos de vista e sonhos, de afinidades e objetivos, de química e física, a essa interceção socialmente se dá o nome de paixão mútua, que cresce e transborda e queima tudo à sua passagem e, dessa ligação consumida através de tudo isso e consumível durante um período de encantamento que varia de um mês a uns anos, se sucedem outras fases, já não ligadas diretamente à paixão mas antes aos factos reais, de quem somos e de como nos deixamos amar e ser amados. E se do todo desse combustível depois da explosão sobrar algo a que se possa dar seguimento, encaminhamento cúmplice e reciprocamente se fala na construção de um amor. Sereno ou desassossegado, com os cambiantes que conhecemos serem características conhecidas dos seres humanos. Existe amor através da essência e da matéria e da união de ambas. E existe diferença entre ambas as essências bem como entre as matérias. Não existem dois seres iguais. Nenhuma relação afetiva "vinga" iniciada com pressupostos errados. Não funcionará. Não acontece. Eu amo que me ames e tu amas que eu te ame e nesse intercâmbio, admito que exista um intervalo onde amamos o outro pelo que ele é, para nós.
E tu (a lembrar-me da minha sábia avó que sempre me disse que o amor era um presente que ia mudando de mãos se as nossas não fossem as ideais para ele) foste um homem simples, sem vernizes, sem altivez, desprovido de orgulhos insignificantes, que já lidavas com alguns afetos de uma forma precária. Conheci-te em processos de fuga, que ao invés de tentares resolver, escondias, cobrias, tapavas, ocultavas, como se fossem provas do crime de sentires que se pudessem camuflar e serem descobertos por outros longinquamente, contigo já noutra dimensão e porventura, já apodrecidos - resolvidos - sem ter quem os reclame. Nada se resolve por si mesmo e ainda que o tempo seja o sal, o tempero que apazigua e distancia, que conforta e aumenta, sabes bem, tu sabes bem que não chega. Tanto que não chegou. E foi resolvido, será que foi apenas temporariamente resolvido? Porque só tu, produto, produtor e consumidor dessa verdade podes sabê-lo. Saber através dos sentidos. E sou a pior pessoa para analisar se houve ganhos terapêuticos no processo. O meu coração disse-me vezes sem fim que "aquele" estaria resolvido, mas haveria resquícios, haveria porventura, pontas soltas, arestas a necessitarem de retificação. Não sei. Volvidos 5 anos desta tentativa a dois, a primeira de te ajudar a resolver afetos presos a somatizações e somatizações que roubavam o teu afeto positivo aos outros que te amavam, e a segunda, dessa jornada que eu queria, quisemos e acredito que ainda queiras para sempre, essa jornada da partilha e complementaridade entre um casal, envelhecer ao lado de, por se gostar, por se respeitar, por se entender, por se amar esses defeitos e compreender essas virtudes, o a dois, dizia eu, volvidos 5 anos, voltamos a uma estaca abaixo de zero. Onde não há diálogo, não há respeito, não há confiança e nem consideração. Tentar? Tentamos, uma, duas, três, quinhentas vezes tentámos, tu e eu. Com dedos inquiridores sobretudo, avisando o outro de que já pisava o risco…separam-nos, não o afeto ou entendimento que achamos que tínhamos do outro, mas, tudo o resto (e tudo o resto é água que corre rio para o mar). Sempre me dei conta que enquanto eu era a noite (não porque escura ou enigmática, mas porque mais aberta ao impossível), tu eras o dia, feito de rotinas programadas, um relógio suíço, uma organização longe do caos que sou. Não nos uniram os livros, nem sequer a música ou o amor ás artes. Nem a profissão, que até temos visões antagónicas quer das nossas quer da do outro, não nos aproximamos na altura e nem no peso, na estrutura familiar e nem no avesso de nós. Somos dois seres completa e totalmente diferentes. Que os opostos se atraem (ou não) sempre soubemos. Que a atracão não chega, não cobre, não protege e não perdura também sabemos. Temos menos em comum que qualquer outro estranho que permitamos entrar na nossa vida. A simplicidade do homem que conheci mantém-se aí, em ti, algures entre a superfície e as profundezas. O orgulho dessa educação machista a que foste habituado, saturado, limado e abrilhantado pela tua profissão não nos auxilia, ao contrário, distancia-nos. No trabalho, não existem afetos, então a tua organização chega, a simplicidade com que organizas e crias estratégias de combate ao crime e das quais te orgulhas e te atribuem medalhas de mérito são ótimas para pendurares numa parede, (quiçá na parede da tua próxima casa, onde salvaguardes um escritório e se possam ver fotos de tomadas de posse, de méritos e estrelas de conduta exemplar) mas perfeitamente obsoletas na aproximação afetiva ao outro, a mim, a tua ainda esposa. Registos básicos familiares, de refúgios e atalhos onde o álcool te mantém à tona afetiva, te segura, te dá continuidade. Aos que conheci neste registo, tenho memória e experiência de terem arranjado forma de fugir ao copy paste, à fotocópia dos progenitores. Tu, eu acreditava que sim, hoje não acredito, pensei que farias isso ao meu lado e tentaste. Sei que tentaste. E que estarias disposto a continuar a tentar. Não estamos ambos cansados? Nenhum de nós é (ainda nem nunca mais) o que já foi em matéria de afetos e de esperanças…O tempo do sal, da cura das feridas transformou o que tínhamos…e por analogia à crosta superficial de uma ferida curável, a um cancro afetivo maligno em grau último, definhando e já não conseguindo lutar mais, não fosse a maldita morfina para atenuar dores. Já amei tanto, tantas pessoas, já me fui deixando ficar, perder, por acreditar, por ser anacrónica romântica. Já me cansei de me destituir de mim para ceder o espaço do que sou, de quem sou para que outro fosse mais feliz, sendo-me parte, vivendo-me em parte. Sou toda, sou inteira, e asfixio sem todas as partes de mim, não me concebo sem a totalidade do que sou, não sei submergir e suspender a respiração, não sei morrer sem minha autorização afetiva. Decidi não me morrer. É difícil viver sem ti (ou pelo menos, assim tenho sentido) mas é-me absolutamente impossível viver contigo.
Na fase do enamoramento, tanto havia que falar, tantas impressões sobre isto e aquilo e coisa nenhuma, hoje nada temos a dizer ao outro. Nada. E sei de estados relacionais em que não ter nada a dizer ao outro é absolutamente saudável, de silêncios consentidos pelo carinho e entendimento. Não é o nosso caso. A tragédia inicia-se quando se tem de falar, de comunicar, sobre nós, sobre os afetos pendentes, sobre a concertação, sobre os acordos, sobre as táticas e as estratégias de coping para conduzir a vida a dois a bom porto. Não és capaz de discutir seja o que for, tudo te parece difícil, as palavras, a entoação, a simplificação é-te complicada, o peso e os detalhes....
O perfeccionismo não existe, os casais sobrevivem com picos, entre o que se vive e o que se sonhou para viver, entre um dia e o outro, mas não sem comunicação. Se me colocasse noutro país, talvez tivesses algo para me dizeres e talvez aí fosses capaz de me dizer do que sentes, do que vês, dos pássaros nos beirais, da falta dos meus cabelos numa almofada perto da tua, dos sorrisos que já não tens ou das canseiras que não são as mesmas. Mas não, do teu lado, sou apenas o objeto da tua motivação, a mulher da tua cama, o criminoso com submetido a inquirições constantes, a esposa que não suporta o álcool e suporta menos a falta que ele te faz. Não és um resistente, não és um valente, não és um durão. Para mim, viraste uma flor de estufa que só quer ser regada, centrada em si mesma na sua corola, alisando as suas próprias pétalas, incapaz de lidar com acontecimentos de vida e chorar e rir e saltar e viver. Viver.
Condenavas, primeiro com palavras, depois com silêncios, eu falar com cão e gato, eu brincar e rolar e ladrar e imitar os galináceos e querer aprender agricultura e sobre as podas e esperar que quisesses fazer diferente em algum dia ou parte dele. ir ao cinema, ou ao teatro ou ver um espetáculo ou estar simplesmente com amigos. A isso, a esses mundos a que chamas de ilusão, eu chamo de vida, a essa vida eu preciso como a terra precisa de água para se fertilizar. E tu bastas-te com pouco do que tens e mais algum do que os outros têm para viveres, sempre no limite da vegetação, entre a contenção de afetos e a superficialidade de quem gostavas de ser. Não és quem gostavas de ser. Entendo. Entendo mesmo. Condicionaste-te, deixaste que te condicionassem, e continuas a fazê-lo porque não sabes outra forma de ser. Todo tu és contenção. Todo tu és de vidro. E sabes, quando te quebrares todo na dependência dos caminhos que escolheres, eu não quero lá estar. Porque eu tentei, eu dei o melhor que sabia e sentia, eu estive lá, quando desististe e só desisti depois de ti. Eu vejo-te, na vergonha de não consumires o apetecível, consumires o possível, mamas umas quantas pastilhas e te recusas a pensar, a sentir. Desejas o adormecimento parcial. Porque em matéria de sexo, estás acordado. Tal como de resto todos os animais de todas as espécies. Sobrevivência e caixa de socorros básicos. 
Não, não vou afundar contigo.
Vou nadar e vou ser feliz nos meus voos, como, de resto, assim me conheceste, inteira e genuína.

Comentários

Anónimo disse…
A arquitestura dos afectos e a construção da paisagem interior...

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