Tarde de Domingo entre Mourão e Franklin








Não consigo ler Miller, irrita-me isto, dou por mim, a voltar atrás à linha anterior, à página seguinte, como se não pudesse sobreviver sem o ler e fosse um esforço vão tentar uma vez mais. Desisti, por ora, e ainda bem. Peguei n Os Homens que amaram Evelyn Cotton, de Frank Ronan e fiquei encantada. E estou tão encantada que apesar de já lhe antever o final, pauso-o, demorando, atrasando esse fim que não desejo ver ao livro.
Os ceticismos assaltam-me, mesmo diante das mais fantásticas histórias de paixões e amores. Ou deveria dizer, principalmente...? Porque me parece que, longe do que imaginava ver/viver neste departamento, se encontram histórias insólitas de amores trágicos e menos trágicos que em nada se assemelham ao que vivi e que em nada se compadecem das minhas lágrimas. Um dia, hei-de destruir essa palavra amor, amor de amar e amor de ser amado. É necessário desconstruir e voltar a erguê-lo. Talvez mais vezes, talvez sempre que nos assalte a dúvida: amarei ou não? Reavaliá-lo, repensá-lo e depois de cada tijolo e argamassa se unirem em sintonia, talvez seja necessário sentir. Parar para sentir, o que cada um sente do, pelo, para, como, ao amor. Porque isto de amar, desbravados os primeiros passos, derrubadas as respetivas barreiras, há-de ser outra coisa que não o amor.
E de encontro a Ronan, à sua perspicácia e entendimento de ser-se mulher ou homem, existe um entendimento maior, enquanto anatomista do sentimento. Apetece, então, desta leitura recolher ao sótão, encolher preceitos e conceitos. Decido que só Ronan podia construir o mundo sob outros moldes. O meu, claro. Deixo ficar aqui excerto desse bom presságio, que venha a servir na ideia que temos do amor ou, em última análise, na coragem de desmontar o que sentimos e permitir-mo nos o amor mais glorioso e simples cujo significado, porventura, possa ter sido perdido nas suas nuances, andanças e mudanças que a vida nos impinge (e possamos acordar amanhã apaixonados por um gesto ou um certo olhar, sem dele esperarmos mais do que ele é: um momento de felicidade).
Para abrir o apetite, o princípio da paixão:

"...tinha uma forma muito sua de dissimular o humor e de se rir dos outros em segredo. Admirava este seu traço. Achava que demonstrava autossuficiência e uma desconfiança saudável em relação á humanidade. andava a estudar Arquitetura em Bath. Era um assunto pelo qual nutria um interesse puramente ideológico e para o qual parecia ter pouca aptidão. Os tutores diziam que tinha um grande futuro naquela profissão, mas naquela altura Bath era uma escola antiquada, onde ainda prevalecia o modernismo.
Benedict entregou-se de imediato ao trabalho com o colmo e durante todo o fim-de-semana a sua silhueta andou empoleirada em cima do telhado, ao lado da de Hugh. Na prática, não deu grande ajuda, mas foi uma companhia agradável. Mais tarde, Hugh disse-me que, embora gostasse de Benedict, mantinha naquele tempo uma certa distância em relação a ele, por qualquer motivo que lhe escapava. Para mim, esse motivo era óbvio. E então para mim, que conheço os Cottons e convivo com eles há tantos anos.
Quando nos apaixonamos por outra pessoa, achamos que tudo o que a rodeia é maravilhoso e único. Ficamos estonteados pela beleza dos mais pequenos gestos e tendemos a fixar tudo aquilo que achamos ser um traço individual dela. Fazemos deles os nossos tesouros, os bens a que podemos recorrer para, de vez em quando, nos sentirmos felizes ou infelizes.
Depois conhecermos as pessoas da sua família, uma a uma ou talvez todas de uma assentada. Pode não haver semelhanças físicas entre os membros da família, mas acabará sempre por vir ao de cima uma expressão da boca ou um dito que se reconhece. Por um breve instante, os olhos dilatam-se e sentimos um frémito de emoção que até então pensávamos só poder ser despertado em nós pela pessoa que amamos. Ficamos de tal modo embaraçados que mais tarde tentaremos negar essa emoção a nós próprios. Senti isso em relação a Benedict, à mãe de Evelyn e ao irmão dela. Senti-o em relação a Sarah Bliss que, embora não seja da família de Evelyn, é extraordinariamente parecida com ela. Acabamos por compreender que a pessoa que amamos não é única em todos os seus traços, mas antes uma combinação única de traços comuns. E, mesmo assim, continuamos a amar esses traços, porque, muito provavelmente, foram eles o primeiro objeto do nosso amor. Consigo, pois, imaginar Hugh Longford, que, naquele momento ainda não estava consciente do seu amor por Evelyn, sentado no cimo do telhado do celeiro grande ao lado de Benedict, a observar um trejeito da boca ou um gesto das mãos e a sentir-se momentaneamente atraído sem saber porquê, mas, para seu próprio bem, a afastar de imediato essa sensação, sem conseguir, no entanto, deixar de sentir uma certa reserva em relação a Benedict.
Talvez esteja enganado. Talvez fosse ainda muito cedo para Hugh estar apaixonado por Evelyn (à parte o facto de a paixão começar sempre muito antes de termos consciência dela) e ele estivesse apenas a sentir uma premonição da raiva que Benedict viria a ter dele."






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