Providence, de Resnais, 1977
O universo onírico de Alain Resnais...
Ler o Contracampo.
Em contraste às décadas anterior (1960) e posterior (1980), durante as quais filmou com uma maior freqüência, os anos 70 se passaram com Alain Resnais dirigindo apenas dois longas-metragens. Stavisky...eProvidence. Estes podem não estar situados entre aqueles mais lembrados como marcantes na obra do cineasta. Estão dotados, no entanto, de características marcantes em sua filmografia e, embora guardando entre diversidades temáticas diversas, parecem de alguma forma sempre recorrer a um mesmo tópico: a construção de imagens e identidades.
Providence tem sua narrativa centrada num universo intrincado onde imaginação, memória, delírio e realidade se enlaçam e se confundem a todo instante durante a noite na qual o escritor Clive Langham (John Gielgud) tenta, entre doses de bebida e dores atrozes, criar um derradeiro romance. Em seu primeiro filme falado em inglês, Resnais preserva elementos básicos de sua obra, neste filme que, como outros de sua autoria, reproduz um fluxo de consciência atemporal durante o qual o escritor projeta seus desejos, emoções, sentimentos, transmutando seus familiares – filhos, cunhada, esposa falecida – em personagens de seu romance. As imagens que Clive inventa e reinventa em seu processo de criação delirante transmitem seus rancores e frustrações para com os parentes.
A direção de Resnais concebe Providence como um labirinto de imagens e sombras, onde as características e atitudes dos personagens vão de transmutando ao sabor do rumo que toam as emoções do pai-criador. Resnais, via Clive, vai concebendo uma narrativa que projeta toda complexidade de um processo autoral, e tudo que um autor consegue injetar de mais íntimo nesse processo. Resnais, por sua vez, vai fazer de seu filme uma mistura de sensações não muito lógicas, mas sempre coerente. Não esquece inclusive de banhar Providence em delicado humor e ironia. Preservando uma possível verve de humor britânico inerente ao texto original do dramaturgo David Mercer, mas injetando seu toque pessoal, como viria posteriormente a fazer em Smoking/No Smoking ou Medos Privados em Lugares Públicos, também originados na dramaturgia inglesa. É em Providence no entanto onde o humor um Resnais aparece de forma mais inusitada e desconcertante.
A conclusão do filme vem elevar um pouco mais esse teor de ironia. A meia hora final traz Clive de volta a uma suposta realidade durante a qual recebe a vista dos parentes. E aqueles vistos em sua obra-delírio como raposas cruéis – em especial o filho mais velho Claude (Dirk Bogarde) – aparecem agora como afáveis e cordatos para com a figura paterna decadente. No entanto, além da aparente paz reinante, o que torna o final de Providenceextremamente incômodo é a artificialidade na qual ele se constrói, num visual de gritante simulacro de uma pintura impressionista. Resnais faz com que o mundo aparentemente imaginário do delírio noturno de Clive se imponha como mais real que o suposto presente idílico, concedendo ao espectador a sensação de entrada em uma nova ala do labirinto, mesmo ao final da projeção.
Cadernetas do cinema.
Ler o Contracampo.
Em contraste às décadas anterior (1960) e posterior (1980), durante as quais filmou com uma maior freqüência, os anos 70 se passaram com Alain Resnais dirigindo apenas dois longas-metragens. Stavisky...eProvidence. Estes podem não estar situados entre aqueles mais lembrados como marcantes na obra do cineasta. Estão dotados, no entanto, de características marcantes em sua filmografia e, embora guardando entre diversidades temáticas diversas, parecem de alguma forma sempre recorrer a um mesmo tópico: a construção de imagens e identidades.
Providence tem sua narrativa centrada num universo intrincado onde imaginação, memória, delírio e realidade se enlaçam e se confundem a todo instante durante a noite na qual o escritor Clive Langham (John Gielgud) tenta, entre doses de bebida e dores atrozes, criar um derradeiro romance. Em seu primeiro filme falado em inglês, Resnais preserva elementos básicos de sua obra, neste filme que, como outros de sua autoria, reproduz um fluxo de consciência atemporal durante o qual o escritor projeta seus desejos, emoções, sentimentos, transmutando seus familiares – filhos, cunhada, esposa falecida – em personagens de seu romance. As imagens que Clive inventa e reinventa em seu processo de criação delirante transmitem seus rancores e frustrações para com os parentes.
A direção de Resnais concebe Providence como um labirinto de imagens e sombras, onde as características e atitudes dos personagens vão de transmutando ao sabor do rumo que toam as emoções do pai-criador. Resnais, via Clive, vai concebendo uma narrativa que projeta toda complexidade de um processo autoral, e tudo que um autor consegue injetar de mais íntimo nesse processo. Resnais, por sua vez, vai fazer de seu filme uma mistura de sensações não muito lógicas, mas sempre coerente. Não esquece inclusive de banhar Providence em delicado humor e ironia. Preservando uma possível verve de humor britânico inerente ao texto original do dramaturgo David Mercer, mas injetando seu toque pessoal, como viria posteriormente a fazer em Smoking/No Smoking ou Medos Privados em Lugares Públicos, também originados na dramaturgia inglesa. É em Providence no entanto onde o humor um Resnais aparece de forma mais inusitada e desconcertante.
A conclusão do filme vem elevar um pouco mais esse teor de ironia. A meia hora final traz Clive de volta a uma suposta realidade durante a qual recebe a vista dos parentes. E aqueles vistos em sua obra-delírio como raposas cruéis – em especial o filho mais velho Claude (Dirk Bogarde) – aparecem agora como afáveis e cordatos para com a figura paterna decadente. No entanto, além da aparente paz reinante, o que torna o final de Providenceextremamente incômodo é a artificialidade na qual ele se constrói, num visual de gritante simulacro de uma pintura impressionista. Resnais faz com que o mundo aparentemente imaginário do delírio noturno de Clive se imponha como mais real que o suposto presente idílico, concedendo ao espectador a sensação de entrada em uma nova ala do labirinto, mesmo ao final da projeção.
Cadernetas do cinema.
Perto de alguns sonhos, nada real tem tanta intensidade”. Dita em determinado momento de Providence por Claude Longhan (Dirk Bogarde) essa fala talvez sintetize algumas das questões propostas por essa obra-prima um tanto esquecida de Alain Resnais: até que ponto os sonhos são capazes de revelar o real? Não seriam os sonhos por vezes mais eficientes em explicitar aspetos da realidade que a própria realidade? Posições claramente controversas, mas nunca desinteressantes.
Deve-se, em primeiro lugar, ressaltar o fato de que a dimensão onírica não é uma novidade no cinema que Resnais desenvolve em Providence. Ela já está presente em seus dois primeiros filmes de ficção, os aclamados Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, Mon Amour, 1959) e O Ano Passado em Marienbad (L’Annèe Dernier en Marienbad, 1961), e também, não por mero acaso, em seu trabalho mais recente, As Ervas Daninhas (Les Herbes Folles, 2009). Em Providence, entretanto, esse caráter recorrente do cinema de Resnais é explicitado, ganhando alguns contornos específicos.
Numa primeira parte do filme, dois movimentos e tons se intercalam. De um lado, quatro personagens formam um improvável quadrado de relações. Claude (Bogarde) é o arrogante e histriônico promotor do caso em que Kevin Woodford (David Warner) é acusado de matar um velho. Sonia (Ellen Burstyn), esposa infeliz de Claude, parece querer a todo o momento trair o marido com Woodford, que se mostra ao longo dessa primeira parte do filme como alguém completamente apático, distante e pouco interessado ao que ocorre a sua volta. Por fim, Helen (Elaine Stritch), também tratada em certos momentos por Molly, mulher que já passou da meia-idade, apresentada como amante de Claude. Intercalando-se com esse quadro de relações, acompanhamos a difícil noite regada à bebida, dores e remédios de Clive Longhan (John Gielgud), escritor que logo deduzimos ser o pai de Claude e que interfere como uma espécie de comentarista, pontuando, ironizando, criticando e, muitas vezes, determinando as ações dos demais personagens, principalmente de Claude.
Ao contrário dessa primeira parte do filme, ora delirante, ora sombria, quase sempre sem um sentido aparente e com personagens que beiram a caricatura, a segunda surge com uma feição mais realista, embora ainda um tanto onírica. Há nesses momentos finais do filme, principalmente nos planos que abrem essa espécie de epílogo de Providence, um tom bucólico, que vai se dissipando conforme as tensões existentes entre os personagens que se reúnem para uma festa vão se explicitando. Os protagonistas desse embate latente são as figuras centrais da primeira parte do filme: Clive e Claude, pai e filho.
Pelo já dito, é possível afirmar aqui que Providence permite uma abordagem claramente psicanalítica, já que Claude é representado como uma espécie de Édipo que deseja matar o pai e fazer sexo com a mãe, que, ficaremos sabendo, é Helen/Molly. Não vamos, entretanto, trilhar esse caminho, até por falta de competência para tanto. Interessa-nos aqui, por outro lado, a construção do filme, formado por essas duas partes com tons e mise-en-scène muito distintas.
Em primeiro lugar, parece importante dizer que essa segunda parte do filme, que se constrói a partir de pressupostos mais próximos de um certo realismo ainda que, como já dissemos, não abandone de todo o tom onírico, esclarece e explicita algumas relações que não são tão óbvias na primeira parte. O caráter impressionista de alguns planos, o comedimento das atuações e o não-dito do roteiro e da encenação completam o quadro desse último ato de Providence. É possível afirmar que esses momentos finais do filme se caracterizam principalmente pelo latente, pelo implícito, por aquilo que não é capaz de revelar todas as tensões existentes naquele círculo familiar. A atuação de Dirk Bogarde é aqui exemplar. É possível perceber contrariedades, mágoas e tensões menos em suas falas que em um meneio de sua cabeça ou em um olhar.
Em outro sentido, a atuação de Bogarde na parte inicial do filme também pode revelar algo sobre ela. Histriônico, sempre gesticulando e extremamente caricato, não cansa de revelar seu egoísmo e seu profundo desprezo pelo pai. O exagero dos gestos e a fala empolada não combinam com o que vemos no último ato do filme, embora certamente revelem ricamente o personagem ou, pelo menos, a visão que Clive, seu pai, tem dele. Não é arriscado dizer que se a segunda parte do filme, calcada em uma pretensa realidade, não revela tudo, destacando apenas os trincos existentes na superfície (para usar uma imagem do filme), a primeira, cuja regra é o delírio, o pesadelo e, mais especificamente, o imaginário, é capaz de explicitar, em grande medida, as tensões que se escondem em meio ao verniz de civilidade dos personagens. Isso não quer dizer, entretanto, que o sonho possa substituir a realidade, até porque um é capaz de revelar o que a outra deixa escondido e vice-e-versa, mas, por outro lado, o imaginário se mostra capaz sim de explicitar conflitos que com mais dificuldade se apresentam a olho nu.
Nesse grande filme sobre as interconexões entre o sonho e a realidade, os grandes temas de Alain Resnais não ficam de fora. O delírio noturno de Clive parece o canto do cisne de alguém cujo passado parece um grande fardo a carregar, repleto de culpas e coisas mal resolvidas. O tempo que corre, a memória que fica e a morte que se aproxima, mais até que seu filho Claude, são os seus juízes. É o que o sonho e a realidade de Providence podem revelar ao espectador que deve voltar urgentemente a esse filme.
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