Kunami para vocês

 



Esta história tem uma moral que só encontra quem quer. Se fosse um ecrã de televisão, esta história teria um círculo vermelho no canto direito superior, dado o teor político, religioso e social e a violência implícita e atroz que pode conduzir à indignação das massas ou, de pelo menos, (a)os que se identificam nela. Ferir suscetibilidades. O autor preserva-se o direito de publicar tudo, por ser sua obra e ser do seu conhecimento, porém a sua intenção não é a de ofender ninguém. Digamos então, que muito além da moral e sem qualquer presunção para tal, as minhas histórias têm sempre um teor reflexivo

Todas as histórias que escrevo são baseadas em factos verídicos e retratam o inconsciente coletivo da humanidade. Uma das tarefas que a fonte me deu foi a de não calar a palavra, seja ela oral ou escrita. E de passar a mensagem para vossa reflexão, aos que abandonam a preguiça de ler e pretendem saber mais sobre a humanidade que nos habita.

O humor sempre foi uma das minhas disciplinas favoritas. Se a houvesse, nas escolas. Infelizmente, o humor foi tomado de assalto e considerado ou agravo ou tontices ou afronta política, religiosa ou social. No meu universo particular, a par de séries estrangeiras como o Benny Hill, Jerry Lee Lewis e nacionais como Herman José, Nicolau Breyner, Raúl Solnado, e mais recentemente Ricardo Araújo Pereira e Bruno Rocha (perdoem-me se não cito outros, não me recordo de alguém mais no panorama nacional que me faça rir), sempre fui adepta de umas boas gargalhadas. E não falo só de rir para não chorar. Considero mesmo interessante o humor e mais interessante o que se pode fazer com ele. Logo, a utilidade do humor. 

Em conversas de família (e quando digo família, refiro-me à minha minúscula família de cinco que passou a três e de três que multipliquei para cinco e que com a ajuda do meu irmão passou a seis), ultimamente dialogadas a duas, a minha mãe tem acrescentado à minha memória peças fulcrais que me ajudam na compreensão e construção do inconsciente coletivo que me urge escrever. 

Aos que conhecem o Ricardo Araújo Pereira, não necessito explicar o teor de Kunami, bastar-me ia desenvolver o tópico. Aos outros que conhecem o humorista, mas não o conceito criado por ele, passo a explicar, para após a mesma explicação, desenvolver o que me propus passar ao papel para reflexão. 

O humorista em questão na rubrica Gato Fedorento criou um sketch que me agradou sobremaneira pela exatidão do termo designar o que conheço de pessoas que andam no mundo, por um lado, num quatro de ouros, que só vêm dinheiro e poupam no estritamente indispensável para depois estragarem, sem querer, no absolutamente dispensável. Devo ressalvar que estas análises são baseadas apenas e somente na minha forma de ver o mundo e não na medida de todos os outros, porque cada qual escolhe a sua forma de viver. Depois da ressalva feita, acrescentaria e já a rir que volto ao sketch mentalmente, e vê-se o personagem do vendedor de feira a vender fruta podre (Kunami) e a tentar convencer os consumidores a comprar o seu produto. Kunami é fruta podre. Tenho uma tia que há muitos muitos muitos anos eu aprendi a estimar, sem entendê-la propriamente. Achava piada à forma como vivia a sua vida e a própria vida e valores que passava aos seus filhos. Convivi alguns anos com ela até deixar de conviver de todo. Lia a minha tia como, não o vendedor de kunami mas a compradora de kunami, assim me explico a mim própria a necessidade da existência de tal figura criada pelo mestre de humor já referido e que passo a usar a sigla do seu nome para o designar. RAP. 

A senhora em causa ia todas as sextas-feiras à feira, bem cedo, com um porta-moedas na mão, as notas metia-as no soutien, com receio de ser roubada e alguns sacos vazios. Voltava carregada com sacos cheios e trazia sempre mercadoria à cabeça. Por vezes obrigava as filhas a irem com ela, muitas vezes, elas fugiam de a acompanhar. 

Eu percebia-as, mas queria ir e perceber mais da tia. E sempre que podia, ia e convencia a minha prima mais nova, normalmente era mesmo ela que não fugia de ir. Enquanto os feirantes tentavam vender os seus produtos, apelando aos pregões do tipo: os meus são melhores e mais baratos, ou comprem, comprem meias baiona que vão da ponta do pé à ponta do......comprem, comprem! 

Toda a gente sabe que nas feiras, a coisa é mais ou menos esta. Chamam ciganos aos ciganos de uma forma pejorativa, mas eles próprios mais "ciganos", adjetivo e não substantivo que a forma pejorativa que usavam com o dito comerciante itinerante sem poiso. Assim era antigamente e muito mudou desde então. A começar pela proibição de discriminação de uma forma de vida face a outra, de povos que habitam o mesmo território, sendo que uns de uma forma permanente e outros mutante, digamos assim. 

A tia mendigava tudo, queria tudo mais barato e se lhe dissessem que faziam mais barato, mendigava para ser mais barato ainda. O marido era emigrante nos países frios, e ela não tocava no ordenado dele, ela própria trabalhava como auxiliar numa escola e era mesmo desse ordenado que ela mantinha os seus quatro filhos, que os vestia, que lhes dava de comer, que os educava. Tinham galinhas e coelhos, tinha no seu quintal, à semelhança de hoje, couves, rabanetes, tronchudas e espinafres, e outras coisas que tais. A tia comprava carne na feira, comprava peixe na feira e fruta, pois o seu quintal era estreito e que eu me lembre só tinha um ou dois pessegueiros na altura, hoje o quintal assumiu proporções dantescas e tem de tudo e mais alguma coisa, e quando digo isto, tem mais ainda. Porque é trabalhadora, porque é filha de lavradores, porque é amante da terra e porque é poupada. Tão poupada que nunca comprava bifes, nem de vitela nem de porco. Comprava as miudezas dos animais e eu adorava espreitar as coisas que ela sabia (e sabe) e que eu nunca descobriria, se não fosse ela ser quem era e a mim me ser permitida a convivência amiúde e a minha curiosidade.

Assim, a tia comprava kunami porque preferia guardar o dinheiro para uma aflição maior e como não tocava no ordenado do tio, era só juntar, somar. E se os filhos comessem fora de casa tanto melhor. Mais barato ficava. Os filhos comiam muitas vezes na minha casa. Na minha casa, a minha mãe trabalhava e só existíamos nós, três miúdos pequenos e uma empregada interna que teria seis a sete anos mais do que eu e eu era uma minorca. A empregada era adolescente de quinze anos que foi para nossa casa ganhar o ordenado mínimo para a minha mãe continuar a trabalhar com os seus doentes e nós podermos ir à escola, fazer os deveres, a higiene, o tratamento das roupas, as leituras, a televisão, o brincar cá fora com a miudagem da nossa idade e as horas de sono, para no dia seguinte voltar à escola. Estas exceções da feira com a tia eram vividas nas minhas férias de Carnaval, da Páscoa, do Verão e do Natal e só um fim de semana entre outros. 

Mas eu adorava ir com ela à feira (as filhas envergonhadas porque a mãe recorria ao pregão mais do que os feirantes e só excecionalmente quando precisavam de comprar alguma camisola ou vestido é que a acompanhavam). A tia comprava tudo o que fosse kunami. E aqui eu estendo o kunami à carne e ao peixe. Tudo o que estivesse "tocado", maduro demais, podre de menos é que a tia se permitia comprar. Feijão canário, alguns pintos e a roupa não eram da mesma classe do kunami porque não havia kunami nessas variantes.  Quando o tio regressava dos países frios, ela não comprava kunami, tentava comprar menos kunami. Eu não comia kunami, e sinceramente, como nem gostava de comer, nem não kunami comia. A fruta em casa nunca foi kunami. Nem a carne, nem o peixe, nem os iogurtes que a mãe comprava, nem os sumos que nós bebíamos, nem o pão era tocado e nem de ontem. Era sempre fresco. Lembro-me que os meus primos quando iam para minha casa que era quase todos os dias, comiam o não kunami com uma satisfação que me dava gozo assistir. E pensava que, se eu gostasse de comer, provavelmente entre o kunami e o não kunami, ia preferir, sem dúvida o não kunami. As minhas tias irmãs dela, que viviam na aldeia também conheciam esse conceito porque vi algumas delas a servirem comida aos maridos que era pior ainda que kunami. Abriam a fornalha e tiravam de lá de dentro o que um dia tinha sido carne fresca e metiam numa panela com água a ferver e o pêlo, bolor, vulgo penicilina transformavam a água e a carne podre, aparentemente em carne kunami e as tias serviam os tios daquilo que elas próprias não comiam e quando os maridos diziam que estava "bô", porque não comiam elas também, elas queixavam-se de dor de barriga e iam à macieira mais próxima, onde recolhiam meia dúzia de maças pequenas e sentavam-se diante dos maridos a fingir que comiam, descascavam as ditas maçãs e iam comendo em pedaços pequenos, de olhos brilhantes, olhavam perplexas os maridos que conseguiam comer o que elas nem se atreviam a fazer. Kunami carnal. Não cito nomes para não ferir suscetibilidades, mas isto não aconteceu no tempo do Salazar! Nada disso! Assisti a isto já em dois mil e "trocó passo" que foi mais ou menos quando decidi comprar parte deste sítio dos Mochos, onde a minha mãe comprou outra parte e veio juntar-se a mim, pois assim poderia ver a família que não conviveu por ter ficado órfã de pai e mãe com dez anos de idade. A minha mãe sempre dizia: Os irmãos são panos para as mãos, volta e meia saía-se com isto e dizia que era costume dizer-se muito antigamente e eu dizia-lhe que não entendia e como sou teimosa e cabeça dura, não passo à frente o ponteiro até entender. Como me tem revelado muitos segredos de família e muitas histórias desconhecidas (e até está a escrever as suas memórias) acabou por me explicar de que forma esse ditado popular que se ouvia por aqui se traduziu na vida dela. Contando-me histórias de alguns irmãos dela. E foi então que eu percebi esta senhora de setenta e nove anos que se chama Evita, mas para ela e é segredo, sempre se chamará Eduarda. 

Com a "ajuda" (uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto) da irmã mais próxima e sobretudo com a motivação e auxílio do tio Joaquim Lopes que ela considera ainda hoje como seu segundo pai, ela cursou enfermagem, após ter sido auxiliar de ação médica. Peripécias da vida, alguns dos irmãos tratavam-na mal bem como cunhadas e faziam dela uma criada de servir, tomar conta de crianças deficientes das irmãs, ir apanhar erva e lenha ao frio e à chuva, quando os filhos do irmão eram da idade dela e ficavam no fogão, no quente e ela tinha que ir, sem casaco e com as mãos cheias de frieiras, depois mais tarde, quando já era adulta e ficou viúva precisou de dinheiro emprestado e lho tinham negado e que havia pedido a uma irmã que nunca lho negou e lhe cobrou juros como se fosse um banco, ou seja, na altura em que precisava de mais ajuda, era quando lhe punham uma corda ao pescoço e mostravam que ela não tinha que querer ter casa própria, mesmo que eles tivessem. E foi assim, até hoje, kunami kunami que é bom! Os "amigos" dela também lhe emprestavam dinheiro a juros e eu imagino que se eram "amigos dela", imaginem que eram inimigos. Por isto e por muito mais, acho piada ao conceito do kunami, fazer sacrifícios nos bens essenciais para depois poder dar para queimar os juros cobrados à irmã em dificuldades aos filhos e netos e sobrinhos desses irmãos e amigos dela. A minha mãe nunca viveu de quatro de outros, nem de nove de ouros, nunca deitou dinheiro fora nos bens essenciais, porque a minha mãe trabalhava de sol a sol para que nunca faltassem os bens essenciais aos filhos.

 Faltaram. Não os bens materiais essenciais, porque nunca me faltou comida, nem educação, mesmo sem religião (porque a minha mãe não é religiosa e nunca nos obrigou aos filhos a ser o que ela própria não era, mas valores morais temos, obrigado). O que nos faltou foi o melhor do mundo de que muitos, tal como eu se podem lamentar. Presença de pai e mãe. Isso não tivemos depois dos meus sete anos. Esse era o maior bem essencial necessário, aos nossos corações. E quando falo em mim, refiro-me aos meus irmãos mais novos que tomei como filhos, na ausência dos progenitores e na presença da empregada interna. 

A minha mãe nunca disse que NÃO aos que lhe atiravam pedras e escondiam a mão, todos lhe pediam favores, empregos, injeções, consultas e obséquios e ela nunca lhes cobrou nada. NADA! Sempre soube que a sua vida era falada, tal como a minha na mesa de jantar dos familiares e falsos amigos, mas nunca teve a coragem e a verticalidade com que nasci de dizer: Querem saber dos meus? Kunami para vocês! E é por isso que ela me diz que teve quinze irmãos de sangue, mas só tem uma irmã de verdade e que se chama Júlia. E nem sequer tem o sangue dela. Porque até as melgas têm o nosso sangue quando nos mordem e não as consideramos familiares ou amigas, sequer parentes. 

Nota de rodapé: Não há kunami nos valores morais pelos quais me rejo.   

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