Clara Ferreira Alves, Os Abrileiros






O POVO PORTUGUÊS é constituído por gente sensata. Pacata. Como dizia George Bernard Shaw, o homem sensato adapta-se ao mundo, o homem insensato persiste em tentar adaptar o mundo a ele mesmo. Por isso, todo o progresso depende do homem insensato.

Para a gente que hoje manda em Portugal, o 25 de abril é uma data que começa a fazer tanto sentido como o 1º de dezembro ou o 5 de outubro. E o salazarismo é um período tão distante da nossa história como as Descobertas e o tempo imperial. A queda de Salazar da cadeira ou a de Caetano no Carmo interessam tanto como a tomada de Ceuta ou a construção da fortaleza de Ormuz. São parte dessa matéria informe, que não aparece no facebook nem nos smartphones, que não se twitta nem se bloga, chamada passado. História. A história de um país é a memória de um povo e conhecer a história pode ajudar a não repetir os mesmos erros. Não espanta que neste momento de total inversão do ciclo imperial português, em que Portugal está a ser financeiramente colonizado por Angola, pela China ou por grupos transnacionais sem pertença histórica, neste momento histórico em que Portugal está a ser colonizado e desmantelado por investidores, "acionistas" e conselhos de administração (onde prosperam antigos ministros e outros ex-serviços do Estado, todos com "excelente currículo" e excelentes remunerações, nalguns casos cem vezes superiores às do salário mínimo mensal), o passado e as figuras do passado sejam tão incómodas quando ressuscitam esse passado.

E não espanta que gente sem qualquer vínculo à história portuguesa e que em nada se distinguiu exceto numa carreira à sombra do partido e demais empresas amigas, fique agora tão ofendida com o insensato Soares.
Passos Coelho tinha várias fórmulas elegantes para responder a isto, se lhe restasse um qualquer sentido de superioridade histórica. Sem resposta: este Governo foi eleito pelo povo português em eleições livres. Com a deselegância que caracteriza esta gente sem memória, o primeiro-ministro respondeu como responderia esse "grande democrata" chamado Alberto João Jardim: isto é coisa de "abrileiros". Ou seja. Passos Coelho respondeu com falta de classe, como dizem as tias. Dizer que Soares procura protagonismo político com o 25 de abril é uma falta de elegância e de respeito, porque se Passos Coelho pôde fazer a sua carreira política, alguma coisa deve aos militares de abril e a Mário Soares. Alguma coisa. Resolveu dar uma resposta de bola baixa rente à relva. Rasteira. "Relveira", diria o imortal Jardim.

Dito isto, Mário Soares agitou as paradas águas da política portuguesa, ao dar razão à Associação 25 de Abril. Com alegre. Não deixa de ser curioso que são figuras históricas da esquerda portuguesa as únicas que ainda conseguem introduzir alguma polémica no pântano da vida coletiva. Estão, segundo o lugar-comum, abertas as hostilidades. A esquerda vive num estado entre o pequeno protesto e o adormecimento. Este é um grande protesto simbólico que não impede ninguém de festejar o que quiser e só obriga os próprios. Estava o sensato povo português posto em sossego, a ser calmamente espoliado nos seus direitos, quando o insensato veio dizer uma coisa: Portugal está a ser vendido a retalho.

A água, a eletricidade, o gás, o petróleo, o cimento, a energia, a rede elétrica, a companhia aérea, os correios, a televisão pública, a imprensa independente, a rede de comunicações, a banca, e de um modo geral tudo o que implique tarifas monopolistas, manipulação dos media e lucros garantidos está a ser alienado. Só falta o ar que respiramos. E o futuro, os fundos de pensões, os impostos por vir, a segurança social, a saúde pública e a educação pública estão a ser negociados. Em nome da crise e da troika, este Governo está a vender o nosso tecido económico, a nossa capacidade de rejeição, a nossa possível insensatez. Está a vender os futuros estudantes, os trabalhadores, os desempregados, os pensionistas, os emigrantes. Porque, quando as tarifas aumentarem como vão aumentar, os compradores estrangeiros e nacionais sabem que as pagaremos. Quando tudo tiver um preço demasiado alto, o hospital, a escola, o tribunal, sabem que o pagaremos. Este Governo tem uma política económica desastrosa e aplica-a com toda a sua fé ideológica na desregulação. Na prática, estamos a ser vendidos e sobrarão ganhos, postos e abundâncias para os serviçais do costume. Não são privatizações, são operações obscuras, com financiamentos obscuros, onde o Governo se limita a ser um agente e um intermediário. O homem que tem a seu cargo a pasta das “privatizações”, António Borges, é um ministro não sujeito ao escrutínio parlamentar, com plenos poderes conferidos pelo primeiro-ministro nas costas do sensato povo. Não presta contas. O que é que isto tem a ver com a democracia? Nada.


Pluma Caprichosa (Expresso de 28 de Abril de 2012)


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