O espectro da xenofobia, por Zygmunt Bauman
Excerto do seu livro: Amor líquido
4. Convívio destruído
(...)
Pessoas desgastadas e mortalmente fatigadas em consequência de testes de adequação eternamente inconclusos, assustadas até a alma pela misteriosa e inexplicável precariedade de seus destinos e pelas névoas globais que ocultam suas esperanças, buscam desesperadamente os culpados por seus problemas e tribulações. Encontram-nos, sem surpresa, sob o poste de luz mais próximo - o único ponto obrigatoriamente iluminado pelas forças da lei e da ordem: "São os criminosos que nos deixam inseguros, são os forasteiros que trazem o crime." E assim "é reunindo, encarcerando e deportando os forasteiros que vamos restaurar a segurança perdida ou roubada."
Donald G. McNeil Jr. deu a seu resumo das mudanças mais recentes no espectro político europeu o título de "Politicians pander to fear of crime". Com efeito, em todo o mundo submetido a governos democraticamente eleitos a frase "serei duro com o crime" transformou-se num trunfo, mas a mão vencedora é quase invariavelmente uma combinação de promessa de "mais prisões, mais policiais, sentenças maiores" com o juramento de "não à imigração, aos direitos de asilo e à naturalização." Como diz McNeil, "políticos de toda a Europa usam o estereótipo de que de que o crime é causado por forasteiros para ligar o antiquado ódio étnico à preocupação com a segurança pessoal, mais palatável."
O duelo Chirac versus Jospin pela presidência da França, em 2002, estava apenas nos estágios preliminares quando degenerou num leilão público em que os dois competidores buscavam apoio eleitoral oferecendo medidas cada vez mais duras contra criminosos e imigrantes, mas sobretudo contra os imigrantes que praticam crimes e contra a criminalidade praticada por imigrantes. Antes de mais nada, porém, eles deram o melhor de si tentando mudar o foco da ansiedade dos eleitores, derivada da envolvente sensação de precarité (uma insegurança exasperante em relação à posição social, entrelaçada com uma incerteza aguda quanto ao futuro dos meios de subsistência), para a preocupação com a segurança individual (a integridade do corpo, das propriedades pessoais, do lar e da vizinhança). A 14 de Julho de 2001, Chirac colocou em movimento essa máquina infernal, anunciando a necessidade de combater "essa crescente ameaça à segurança, essa maré montante", em vista do aumento (também anunciado na ocasião) de quase 10% de delinquência no primeiro semestre daquele ano, e declarando a disposição de transformar em lei, uma vez reeleito, a política de "tolerância zero". O tom da campanha presidencial fora estabelecido e, Jospin não demorou a aderir, elaborando suas próprias variações sobre o tema comum (embora - inesperadamente para os solistas principais, mas decerto não para os observadores sociologicamente informados - a voz mais destacada tenha sido a de Le Pen, na qualidade de mais pura e, portanto, mais audível.)
A 28 de Agosto, Jospin proclamava "a batalha contra a insegurança", prometendo que não teria "nenhuma complacência", enquanto a 6 de Setembro Daniel Vaillant e Marylise Lebranchu, seus ministros, respetivamente do Interior e da Justiça, juravam que não tolerariam de forma alguma a delinquência. A reação imediata de Vaillant aos eventos de 11 de Setembro nos Estados Unidos foi aumentar os poderes da polícia, principalmente no que se refere ao enfrentamento de jovens "etnicamente estranhos" habitantes dos banlieux, as amplas áreas residenciais situadas nas periferias urbanas, onde, segundo a (conveniente) versão oficial, era gerada a demoníaca mistura de incerteza e insegurança que envenenava a vida dos franceses. O próprio Jospin continuou atacando e vilipendiando, em termos cada vez mais mordazes a "escola angelical" da abordagem ultra-suave, jurando que jamais pertencera a ela no passado e jamais o faria no futuro. O leilão prosseguia, e os lances se tornavam estratosféricos. Chirac prometeu criar um ministério da segurança interna, ao que Jospin reagiu com o compromisso de um ministério "encarregado da segurança pública" e da "coordenação das operações policiais". Quando Chirac brandiu a ideia de instituir centros destinados a trancafiar delinquentes juvenis, Jospin fez eco a essa promessa com a visão de "estruturas gradeadas" com a mesma finalidade, superando o lance do oponente com a perspectiva de "condenações sumárias".
Apenas três décadas atrás Portugal era (juntamente com a Turquia) o principal fornecedor de "trabalhadores convidados" |os Gastarbeiter|, que os Burger alemães temiam saquear suas cidades e destruírem o pacto social, pilar da sua segurança e conforto. Hoje, graças ao aumento significativo da sua riqueza, Portugal passou de exportador a importador de mão-de-obra. As dificuldades e humilhações sofridas quando era preciso ganhar a vida no exterior foram rapidamente esquecidas. 27% dos portugueses declararam que os bairros infestados do crime e de estrangeiros constituíam sua principal preocupação, e Paulo Portas, um recém-chegado à arena política, jogando uma carta única, violentamente contrária à imigração, ajudou a conduzir ao poder uma coligação neodireitista (da mesma forma que ocorreu com o Partido do Povo Dinamarquês de Pia Kiersgaard, com a Liga Norte de Umberto Bossi na Itália e com o Partido do Progresso na Noruega, radicalmente anti-imigrantes - todos os países que não muito tempo antes enviavam seus filhos a terras distantes para ganhar o pão que eles próprios eram muito pobres para oferecer).
Notícias como essa frequentemente ganham as manchetes dos jornais (como "Reino Unido planeja cancelar asilo", The Guardian, 13 de Junho de 2002 - considero desnecessário mencionar as manchetes dos tabloides...). Mas o núcleo principal da fobia de imigrantes permanece oculto das atenções (de facto, do conhecimento) da Europa Ocidental e nunca vem à superfície. "Culpar os imigrantes" - estrangeiros e recém-chegados, e particularmente estrangeiros recém-chegados - por todos os aspetos da doença social (e acima de tudo pelo nauseante e desabilitante sentimento de Unsicherheit, incertezza, precarité, insegurança) está se tornando rapidamente um hábito global. Nas palavras de Heather Grabbe, diretora de pesquisa do Centro para a Reforma Europeia, "os alemães culpam os poloneses, os poloneses culpam os ucranianos, os ucranianos culpam os quirguizes, que por sua vez, culpam os usbeques", enquanto países pobres demais para atrair vizinhos em busca desesperada por meios de sobrevivência, tais como Roménia, Bulgária, Hungria ou Eslováquia, direccionam seu ódio aos habituais suspeitos e culpados de plantão: aquelas pessoas do lugar mas em constante mudança, sem endereço, e assim - sempre e onde quer que estejam - recém-chegadas e forasteiras: os ciganos.
quando se trata de estabelecer tendências globais, os Estados Unidos têm prioridade indiscutível e geralmente assumem a iniciativa. Mas juntar-se à onda global de ataque aos imigrantes representa um problema muito difícil para aquele país, reconhecidamente formado por imigrantes. A imigração atravessou a história norte-americana como um passado de nobreza, uma missão, um empreendimento heroico levado a cabo pelos audazes, os valentes e os bravos. Assim, desprezar os imigrantes e lançar suspeitas sobre sua nobre vocação significaria atacar o próprio cerne da identidade norte-americana, e talvez fosse um golpe mortal no Sonho Americano, seu indiscutível pilar e cimento. Mas esforços têm sido feitos, por tentativa e erro, para tornar o círculo quadrado.
A 10 de Junho de 2002, funcionários de alto escalão do governo norte-americano (o diretor do FBI, Robert Mueller, o subprocurador geral, Larry Thompson, o subsecretário de defesa Paul Wolfowitz, entre outros) anunciaram a prisão de um suposto terrorista da Al-Qaeda que retornava a Chicago de uma viagem de treinamento no Paquistão. Segundo a versão oficial do caso, um cidadão norte-americano nascido e criado nos Estados Unidos, Jose Padilla (nome que aponta raízes hispânicas, ligado às últimas levas de imigrantes, pobremente assentadas, de longa lista de filiações étnicas), converteu-se ao islamismo, assumiu o nome de Abdullah alMujahir e prontamente procurou seus irmãos muçulmanos em busca de instruções sobre como prejudicar a sua terra natal. Foi instruído na arte tosca de fabricar "bombas sujas" - assustadoramente fáceis de montar" a partir de alguns gramas de explosivos convencionais, amplamente disponíveis e de praticamente qualquer tipo de material radioativo" em que potenciais terroristas "possam pôr as mãos " (não ficou clara por que era necessário treinamento sofisticado para produzir armas "assustadoramente fáceis de montar", mas quando se trata de lançar as sementes do ódio, a lógica é irrelevante). "Uma nova expressão entrou no vocabulário de muitos norte-americanos médios depois do 11 de Setembro: bomba suja, anunciaram os repórteres Nichols, Hall e Eisler, do USA Today.
O caso foi um golpe de mestre: a armadilha ao Sonho Americano foi habilmente contornada pelo facto de Jose Padilla ser um estrangeiro e um estranho por sua própria e livre escolha como norte-americano. E o terrorismo foi vividamente retratado como algo ao mesmo tempo de origem e ubiquamente doméstico, oculto atrás de cada esquina e se espalhando por todos os bairros - tal como os antigos "comunistas debaixo da cama". E foi assim uma metáfora impecável e um escoadouro totalmente confiável para os medos e apreensões, igualmente ubíquos, da vida precária.
In Amor Líquido, sobre a fragilidade dos laços humanos (pgs, 66, 67)
Editora Zahar
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