Alice Macedo Campos

 




sabes, pai, às vezes quando acordo
pego no contador que tenho dentro do
peito e leio o que me resta da vida.
nesses dias, o mundo ausenta-se para
o teu bolso à espera da primeira insónia
da manhã. é então que agarras num lápis
cansado deste ensejo improvável e desenhas
o meu retrato. uma mulher na berma da estrada
com o ar insuflado dentro do espartilho. por
baixo dos canos altos, escreves as palavras:

o coração é um órgão cuja hemorragia
produz lírios de açafrão.

é por isso que os teus livros são casas de putas.
rendas elevadas que os homens pagam em troca de
consolações orgásticas. às vezes digo os nomes
deles enquanto urino. sento-me na retrete a matar
a sede aos porcos. dou por mim a pensar que deus,
afinal, está sepultado na tua mão direita.





in Tradução da Memória, 2007

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