Ancestralidade

 



Nascemos. E como dói chegar. O corpo todo moído, mas o baque é da alma.

Crescer e acreditar que o amor é imortal (e é), e que, quem nos protege sempre o fará. E ampliamos experiências e desenvolvemos a área motora e todas as outras, através desta exploração espacial. Contactamos com os que são a família e acrescentamos saber à experiência, afetos, numa construção do self e, tomando por garantidos certos hábitos, tornamo-nos maestros dessa construção.

Quando existem traumas, cortes, separações de figuras de vinculação, vitais para a estrutura, até então edificada, vamos descobrindo mais sobre os outros. Os amigos, os familiares, os vizinhos, os contactos, os animais de estimação, o grupo de pares da escolinha, etc. O universo parece-nos grande e fiável, mas não depois disso. Um corpo estranho ao nosso que nos permite esse crescente desenvolvimento com alguns antagonismos. O universo não era um amigo.

Lembro-me do meu pai, um metro e noventa e dois de altura, pode-se ser maior? Pode esse LUGAR de progenitor ganhar um estatuto maior do que ser a placa tectónica dos afetos? Não para mim. Ele foi e é o meu herói, o Francisco. 

Perder não é ganhar, embora o seja, de uma outra forma. Quando se termina algo, dá-se início a outro algo. No meu caso e entre nós, foi a tua falta e a falta que me fazes ainda. A saudade com que te lembro e as dores que construi ancorados nessa saudade imensa de ti. Fazes-me falta ainda. Há quase 50 anos que te não tenho. Mas tenho-te de uma outra maneira. Falo contigo e tu me respondes e me proteges, mas "a vida, Cristina, é uma escola sem fim, filha". E essa aprendizagem ajuda-me a manter-te vivo, agradecendo pelo que continuas a fazer em mim, por mim, para mim. Pai, Tu SERÁS SEMPRE O MEU HERÓI. 

Desde os meus sete anos, a que já não pudeste assistir, tenho estado contigo e tu sempre disponível.

Não te ultrapassei, não pude esquecer e recordo-te com a incrível nitidez de ser humano e homem, pai e amigo. 

Aos doze anos, Pai, implorei-te que me levasses para ao pé de ti. Nessa altura, não tive respostas, mas a tua total ausência. Acreditei nessa altura que realmente me tinhas morrido, como morreste para todos os que calaram o teu nome, fingindo que nunca tinhas existido. Foi difícil conviver comigo. A revolta tomou conta de mim. Os humanos não me entendiam. Eu não os entendia a eles. Nem queria. Não gostava de nada e nem de ninguém que fosse mortal, todos me pareceram indignos. E pela tentativa de abuso de que sofri e da qual me defendi, tive a experiência que me mostrou da nossa infinitude. A experiência de quase morte. Deus, como fui feliz nessa altura, foi a minha recompensa, assim era como eu via e sentia a experiência da TRANSCÊNDENCIA. Afinal, a morte era a capa física de que eu podia abdicar. Mas vocês não me deixaram ficar. Fui obrigada a voltar e ficou-me no registo um CONTRATO. Não podia ir para a vossa beira porque a mãe já te tinha perdido e não tinha ultrapassado essa circunstância de uma forma saudável. Os antidepressivos fizeram a sua primeira aparição na nossa vida. Ela encharcava-se de pílulas para ir trabalhar e nunca viveu o luto de ti. E eu vivi a vida em posição de sacrifício. Continuo e sabes disso. Um sacrifício a que já não encontro nobreza, a não ser desgaste, tortura, cansaço e alegria nenhuma. A vida, pouco depois dessa experiência, roubou-me o Rui Alberto. O meu irmão caçula. E também queria roubar-me o Antero. Tudo obedecia a um plano maior. Ele caiu na escola. Traumatismo craniano encefálico grave. Todos acreditavam que tinha morrido. Não morreu. 

A minha revolta não permitiu que te procurasse, depois de tudo isto. Deus era negado por mim, de todas as formas que eu podia. Não me permiti ser alegre, ultrapassar com méritos esta fase. Hoje sei que nunca me abandonaste. Cumpres um outro propósito, também tu em sacrifício?

Muito graças à partida do Ruizinho, comecei a estudar psicologia e Freud.  O iceberg que eu conhecia bem. E cada vez mais. Tinha quinze anos, levava Freud comigo para todo o lado. Quando os humanos me aborreciam, eu ficava com o Sigmund. E assim, entre Freud e as dores, conheci o homem que me veio mostrar que, afinal, a vida pode ser uma construção de Luz. Ele era a própria LUZ, a reencarnação da Estrela que cuidava de mim, enquanto tu ainda vivo, já padecias dessa doença cardíaca que te roubou de nós. Entre as conversas que ouvia do Dr. João Bastos, o teu cardiologista e amigo, visita frequente da nossa casa.

Ele chegou e com ele, a minha alegria voltou a ser parto, vida e crescimento, motivação, expansão e descobrimento. Lembro-me sempre, como poderia eu esquecer? Aos 21 anos fui mãe e o meu maior receio da altura era que durante o parto, se voltasse a sentir-me exausta e doente, pudesse partir em mais uma experiência de quase-morte e não tivesse tempo para ver o meu filho e despedir-me do meu amante. Do meu amor. Não aconteceu. Não voltei a viver essa LUZ, exceto quando tive o enfarte de miocárdio e juro, pensava que me iria reunir convosco. Tal não aconteceu. Continuo por aqui. 

Perdi fisicamente as pessoas que me mostraram o melhor extrato e excerto da humanidade. Porém, hoje, estão todos comigo e em mim. Agradeço o vosso empenho e amor. Todos os dias. 

A família paterna desvaneceu-se quando a avó Bina partiu.  Ela própria já havia dado esse vaticínio em conversa com o avô Rodrigo: Rodrigo, quando partirmos, não mais se reunirão, acabará tudo, virarão as costas uns aos outros. E assim foi, connosco. Da nossa casa cheia, diariamente, enquanto foste vivo, se afastaram todos, sem nota de registo, sem porquê e sem glória absolutamente nenhuma. O vazio familiar foi estrondoso e doloroso. Não mais tios e nem primos, não mais confidências, almoços e interstícios. O redundante final. Estávamos entregues a nós próprios e tu sabes melhor do que eu. Na altura, ainda tinha um véu nos olhos e desculpava-os, para mim, em monólogo, entendível somente no interno. Ah, não souberam perder o coração da família, a estrutura maior. Não. Foram feios, porcos e maus. Hoje vejo claramente, os segredos todos a desvelarem-se. Roubaram-nos um terreno, a tua irmã Augusta fê-lo. Nunca saberei porquê, mas vou deduzindo, tudo em processo interno e mute. Silêncios abismais!

Esconderam-nos mais tios, mais primos, numa total desvinculação afetiva. Onde nos inseríamos nós? Em parte, nenhuma. A minha mãe sustentava a nossa casa, tu sustentavas a casa dos teus pais e irmãos. E todos sabiam disso. 

Depois da tua partida, abriram-se hostilidades contra a mãe. Porque ela deixou de ajudar economicamente, para poder sustentar sozinha três filhos e uma casa. 

Também me lembro com alguma mágoa na altura das conversas hediondas que ouvi sobre a mãe. Todos diziam que era uma desvairada, que trabalhava de sol a sol e tinha uma empregada interna a tomar conta dos vossos filhos. Eu fugia para o poço, no quintal da avó. Tapava os ouvidos. A tia Joaquina era maldosa, a tia Camila, a tia Augusta, até a tia Mimosa, todos pisavam o nome da minha mãe, na tua ausência. Queriam tirar-nos a ela, colocar o avô Rodrigo como tutor dos vossos filhos. Queriam puni-la pela tua morte. Por isso, lhe roubaram o terreno, por isso, nos roubaram a convivência. E tantos por isso! Tu não morreste. Nem o Rui. A avó Albina e o avô Rodrigo continuam comigo. Agora, a tia Cármen faz parte desta dor, a única com quem me relacionei sempre, de uma forma saudável.

Já está convosco há quatro anos. E todos se reúnem comigo. Fazem o mesmo com os outros? Porque não falam eles de vós? Porque preferem que os vossos nomes sejam escondidos e apagados da existência? 

Não conhecia o bisavô, hoje convivo com ele, Deus como me acompanha ele tanto! E sou grata a cada um de vós, a Claúdia visitava-me amiúde. Aqui na quinta. Agora, já só a vejo e oiço num outro "corpo" que não reconheço e sempre de fugida. 

Hoje sei porque vos devo honrar. E sei que a minha honra está ligada à vossa. O meu amor é eterno, assim como o vosso e sei que me aguardam todos. Não ainda. Já sei que ainda não é chegada a hora. Gostava de voltar a falar com a família, de encontrar a avó Bina e o avô Rodrigo nos seus maneirismos, nas suas semelhanças e diferenças. Tenho saudades de um abraço físico, pai. 

Tudo me é negado, e tudo o que me é dado, é depois arrancado. Tento compreender este amor que vem associado à dor de vos não ter mais aqui. 

Gostava que soubessem que a minha vida continuará a ser vivida com base no vosso carinho sem intermitências. Sei que sabem disso. Espero que me perdoem pelas minhas faltas, pela dor que não sei eliminar, pela minha saudade de vós. 

Temo que vem aí uma fase em que dificilmente terei tempo para estar convosco. E vem aí mais um luto, do qual desconheço se terei pé, sozinha, para viver e ultrapassar. Sei que conto convosco nas minhas maiores batalhas e sacrifícios. 

Não tenho saudades de um abraço interstelar, mas ainda do físico.

Precisava de um abraço. Hoje acordei esfomeada de vós, aqui. AQUI.

Pai, amo-te. Amo-vos. Estejam comigo na dor que se avizinha. Peço-vos. 

 

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