Francisca Pascoaes
Província Enorme
(da origem das espécies, na senda do mal)
Advirto os mais suscetíveis
que o poema não se compadece do leitor.
Nem o poeta que o decreta colheita
Na província fui feliz,
não agora, adulta,
nunca agora, madura
mas quando era criança,
inocente, beligerante, petiz
Idealizei o lugar,
a copa das árvores,
as ovelhas,
as flores e perfumes,
as abelhas,
idealizei os rios
e as fontes,
os prados e as pontes
Às pessoas, cri-as cruas
autênticas e com sotaque,
com jargão e destaque
de vocábulos cantantes
e silhuetas queimadas de sol
inteiras, românticas,
brutas e nuas.
E vi-as mondar
colher, cuidar
encontrei-as cantando
sorrindo e sendo
mas a romântica fui eu
e a noite cobre-me
perdoa-me e esconde
a minha deceção
desta gente
A ignorância é medonha
assombrosa, arrepiante
e invejosa
Ah, saudades da cidade
dos vizinhos invisíveis
das conversas nos jardins
públicos,
dos animais dos outros!
dos centros comerciais
dos bares locais e
dos turistas diários
Fecho janelas e portadas
ainda assim vejo estrelas
esta é toda a província
que necessito
longe da ruindade,
dos cruéis e do absinto
(que aqui se chama bagaço
e rima com rebuço)
A aldeia dormita,
a população alcoviteira
sonha em derrubar quem
chega e é diferente
vejo-os ruminar, entre dentes
na igreja, nos adros
são rebanhos mascarados
de humanidade
gente de verdade? Nenhuma.
Talvez exista sim,
talvez longe de mim
fechados em casa
no sussurro e na calada
no pó da terra e enxada
Saudades do mar e das serras
Quero-me longe dos hipócritas
que podiam ser simples,
podiam ser de verdade
mas escolheram ser serpentes
que rastejam com pernas
e braços e línguas
discentes de crueldade!
E vão às igrejas,
às missas de sétimo dia
sem lembrar o morto
sem sensibilidade,
o absurdo da sangria
e repetem os versos avulsos
do padre da paróquia
que vende as missas
à meia dúzia
Deus não está nas mesquitas
de gente abestalhada
sem pingo de amor
com riso de falácias
Nem sabem o que repetem
fingem-se tocados pela
glória do Senhor
Ele que não gosta de mornos
e nem de murmuradeiras
São intrépidas, freiras
da língua costureira!
E à bíblia não conhecem,
repetem num linguajar
o nome do Cristo
como se fosse o nome que dão
à malícia, só que com veneração
Não conhecem o livro de salmos
nem quem foi Nabucodonosor
mas vão vaidosas e simuladas
à frente comer a hóstia
e reparam quem está
quem vai, quem foi!
Da Lei de Deus
se assemelham à vaca e ao boi
Ao livro Sagrado,
conhecem talvez a capa,
talvez só a capa
Broncos, gordurosos,
amantes dos vernizes
e da estultícia
papagaios frios de sacristia
que nem com correção
se tornariam aprendizes
E ainda usam o nome de Deus
como efémero e estertor
se Lhe conhecessem, sabiam
que Ele não se agrada
de gente rasa
gente que não sabe
o que é tolerância e Amor
Ah, a aldeia é só o sítio
a morada, onde abraço a
noite estrelada
Gente a sério?
Só os que já se foram
sapiência nenhuma!
Onde estão os justos, pai?
e os sábios?
E neste rosário de atrocidades
e alguns pinguços protegidos
na sua santidade inocente
um povo bovino que
escolhe ser superficial
Nesta senda de século XXI
na ausência de verdades,
ser espiritualizado
é considerado herege,
pelintra demónio, praga e mal.
E assim o país laico
patrocina a ignorância
só promove a vindima
e da uva, o elixir batismal
E agora, para rimar
com a fogueira
onde me querem queimar
venha de lá essa benzedeira
vomitem espuma e caveira
e façam a pira crescer
que o meu pensamento
não calam
Eu sou mais Joana D'Arc
Venho de livros e toga e,
comigo trago um cesto de estela
enquanto se apupam as velhas
eu preparo o meu grande final
e ainda vos facilito a espada
com que me possam cortar
esta minha perspetiva desigual
esta cabeça que não é laica
neste país experimental da treta
decretem-me lá por julgamento,
forasteira, estrangeira
de família enorme e disforme
exemplo de inveja e quezília
diarreia sem sacramento
e retreta antes de me calar!
Noblesse Oblige
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