Alzira Guedes
Contratos antigos
Compromisso com Deus
Revisito a infância, onde,
por motivos de luto e desamparo,
perdi a minha âncora,
o chant de ligação à terra
sabia que era uma artista,
dissera-me o meu pai
idealista, generosa, dedicada e livre
Acima de tudo, sabia qual era A MISSÃO
A maior de todas, através do amor, levar
esperança, aos becos escuros da guerra,
a cura da saúde e da fome de todos os géneros
aos lugares mais recônditos da três dê.
Ensinar a ler os que queriam aprender,
crianças e velhos.
Com 6 anos, eu já era professora
e já ensinava crianças mais novas a ler.
A interpretar poesia, a aconselhar
leituras e a injetar sensibilidade.
Fazia teatro e novelas,
dançava com as estrelas
escrevia e acrescentava
planos longínquos ao papel.
Deus sabe porque me fez.
Algo bem maior do que eu.
Por militância e propósito.
Lembro-me que em frente à televisão,
aguardava religiosamente o programa
das missões em África.
Obrigava-me a ver a Eucaristia dominical,
a TV Rural do engenheiro Veloso
para, finalmente, poder espreitar
os missionários e a Caritas,
a cruz vermelha e os asilos,
os meninos com os olhos brilhantes
e curiosos, onde não existia desalento,
mas fome e não havia roupas bonitas
nem sapatos de verniz, mas chão de terra,
e curiosidade, sede de saber
e eu ambicionava crescer para ser uma
das senhoras vestidas de branco que
ia curar as feridas da miséria e do pranto
dos órfãos de guerra, dos mutilados
e os meus amigos de rua,
não me vendo sair para brincar,
vinham bater-me à janela da sala,
chamar-me chata,
não compreendiam as minhas
motivações internas; e não tinham
porque o fazer, eram apenas crianças.
Eu é que já não era.
e quando me perguntavam
- e quando cresceres, que vais fazer?
Eu dizia-lhes que ia escrever
contos para crianças, como
já escrevia para eles.
E na pergunta de adultez,
casar, ter filhos,
lhes responder que talvez tivesse
um namorado, viesse a viver numa
casa de madeira junto a um rio
ou lago e filhos nenhuns.
Os meus filhos eram de um mundo
distante, paridos e germinados
noutros ventres, meninos sem pai
como eu, sem mãe, como eu,
que já sabia que era órfã de mãe viva
e ausente. E de família nenhuma.
A aceitação de tudo isso,
a compreensão antecipada
veio muitas vezes visitar-me
e eu estava mais do que preparada.
Não aconteceu.
Ao invés disso, aconteceu o amor
e depois do amor a dois, outro
maior, e passamos a ser três.
Nunca me esqueci
Ainda não cumpri
o meu destino.
E não vou poder adiá-lo mais.
Tem que ser nesta vida,
essa vocação e dons
foi Deus que mos Deus
para o propósito do Todo
e digo-lhe, mesmo quando
estou mal que não me esqueci
que sei que vou cumprir
sem mais desvios,
ao que me comprometi.
Visito a infância com frequência
também porque lá mato as saudades
do meu pai Francisco e da alegria
que já não sinto na vida
mas que tenho para ofertar.
Quando temos a fonte interna
invisível e marcada ao Céu, como eu,
não se esgota o fio
de ligação, o de Ariadne,
nunca desistimos de sonhar,
que é afinal o fermento necessário
para materializar.
E o amor não esgota, nem a vontade
de mudar a sociedade.
De sermos muitos a não aceitar
a conformação da mentira e ilusão
e a trazer justiça e verdade.
Foi tudo isso que vim cá fazer
e perdi-me tanto.
E oiço Deus sussurrar-me ao ouvido
- Querida filha, precisavas aprender
que para seres tu, não podias agradar
aos outros, mas à luz que trazes dentro de ti,
preciosa essa luz que pode iluminar o mundo,
a luz da tua generosidade.
E eu tenho esse compromisso com Deus
desde criança, algo de muita responsabilidade
-Chega de procrastinar,
de sofrer e de adiar o que me propus cumprir.
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