Lídia Pastor



Tornado e devoção a jusante, Faustino

Não sabia que voltarias, 
 vinte e cinco anos de afastamento, 
como se fosse noutra vida 
e num outro tempo! 
Uma vida passou, e vivi tantas outras 
e todas desiguais, sendo magoada, 
 caindo e me levantando 
doando-me e sendo castigada por isso, 
como se fosse um crime amar os outros. 
Como se fosse eu que estivesse errada. 
E sempre como se cada dia e cada vida 
que passou por mim merecesse 
a minha entrega. 

Sempre te procurei. Talvez 
buscasse a tua amizade, não mais. 
Apaziguar a saudade do amigo, 
mais do que do amante. 
Deus, como tudo foi devastado. 
Como se tudo o que tivéssemos vivido 
antes fosse desimportante. 
Nem uma conversa, nem um gemido, 
um grito, um fonema, nada, nada. 
Só o teu virar de costas, 
de mãos dadas com essoutra. Ela. 

Que entrou em nossa casa, qual cobra 
cheia de manha, a devassa, 
se apoderou do tempo, 
da minha confiança, 
roubou o "nós, abrindo um fosso 
desvirtuou a nossa aliança, 
quando me pediu uma lingerie e me 
 devolveu a mesma toda recortada. 

A minha mãe vaticinou o que acontecera. 
 Testemunhou a entrega dessa ingrata. 
Eu que nada sabia de maldade, 
que não via maldade em nada!!! 
Grande lição me deu essa garota da Sé, 
habituada já com a família, nos caldos de 
penas de galinha e nos rabos de crocodilo, 
essa garota destroçou a minha vida. 

Abriu uma ferida que acreditei 
pudesse estar fechada para sempre. 
Olho para trás na permanente 
tentativa de entendimento. 
 Preciso compreender as motivações, 
sobretudo as que magoam o outro. 
E nunca entendi. 
A parte dela entendi há muito, 
mas não a tua. 

E depreendo que essa coisa de bruxarias 
e de maldições deve ter 
uma faísca de verdade, 
pois ela conseguiu afastar-te de nós, 
de mim e do nosso filho e 
a cada fim de semana em que 
ele queria estar contigo, 
ficava mais e mais distante, 
apenas umas horas, 
 até me ligar já doente que, afinal,
 queria voltar para casa. 
Fiz muitas análises nesse tempo. 

Não sabia se algum dia me perdoaria 
por confiar nas pessoas. 
Eu tinha vinte e nove anos e ela era 
mais nova e já tão má, tão maligna, 
tão ingrata, tão premeditada, tão maldita, 
ela e a sua progenitora, que a instruiu. 

A ignorância é que é maligna. 
Quando olho para ela hoje, 
só tenho pena. Pena de mim, 
do Rui, de ti, de nós. E tu,
 deixaste de ser tu para 
encaixar num novo sistema 
de crenças, numa família sem 
valores ou onde os valores são outros. 
E o amor? E sermos autênticos? 
E andarmos alinhados com a verdade? 

Quem somos? A quem permitimos 
que nos façam 
ser quem não somos, ou outros que, 
não sendo, passamos a ser? 
Não é isso verniz? Ou unguento? 
Que raio de poder tem um corpo, 
um momento, para destruir tudo à volta. 

Como um sismo de nove na escala de Richter, 
assim foi em mim a tua partida! 
Tentei reconstruir-me. Tudo ilusório, 
deduzo, pois bastou que viesses 
 visitar-me em Agosto passado,
para abrir uma DOR que julguei 
nem existir mais. 
E não é só saudade, porque a 
saudade levou-me 
tantas vezes a Moimenta, mesmo com eles, 
 tantas vezes a Cinfães, a Canedo,
 a Lamego, ao Porto, a Ermesinde 
e não me matou!! 

Tens noção das visitas que fiz ao passado? 
Não podes ter noção! Ir à baixa do Porto 
significava fugir de ir a ti. 
A aproximação ao "inimigo" não 
 podia acontecer. 

E cortar relacionamentos com todos 
com os quais convivi os que 
me aproximavam de ti! 
Um total desenraizamento, como quando 
perdi o meu pai, o meu irmão, o avô, 
a avó e continuo a perder. 
Depois a Claúdia, depois a Lourdes, depois a 
tia Carmen e agora o Viriato! 
Onde cabem todos num coração segmentado? 

Tem dias que não sei porque vivo! 
E eu que gosto tanto da vida! 
 Não gosto de sentir pena de ninguém 
mas sinto compaixão por mim, 
por não ter terminado de uma maneira mais digna, 
de não ter lutado, de me ter acomodado, 
 de ter aceitado que, afinal, o amor, que é o amor? 
senão o que somos ou o que deixamos de ser, 
de sentir, de querer, de ficar, de fazer, de mostrar, 
de vencer. E eu não lutei. Desisti. 

Lembro-me de, no período que antecedeu o 
 episódio dela em nossa casa, dela no meu fogão, 
dela, sem licença, cozinhar para ti, 
dessa que me pediu a lingerie, 
durante duas ou três semanas, 
ter corrido com a Tânia 
para o quarteirão do atelier e custar-me a crer, 
olhar para a janela onde tantas vezes, 
durante anos a fio, conversamos tu e eu, 
 cúmplices e companheiros, 
e ver os cabelos dela, noite após noite, 
semana após semana. 

Afinal, a traição pode ser algo arrebatador, 
um monstro com o qual não sabemos lidar, 
assim, no imediato, mas quem estará preparado 
para ser traído? 

 Não sabia que o amor podia sucumbir a traições. 
Nessa altura não sabia, nem sabia da astúcia, 
da malícia da raposa. Seria eu uma mulher? 
Ou uma criança? Que acreditava no amor 
sem grilhões e com verdade. 
Que pura que eu era! E foi noutra vida pois
já faz lembrar as fossas marianas, 
porque não termina, nem o fundo de mim, 
nem o fundo da desolação, nem o fundo do amor. 

E vinte e cinco anos depois, ela apaixona-se por 
outra pessoa e libera-te! Tu visitas-me e eu volto a 
sentir o que sentia, só que com raiva, com desatino, 
com incompreensão pelo processo! 
Porque me vieste tu visitar? Porque não ligaste antes 
de vires para eu poder fugir ou estar preparada? 
Porque tinha que estar preparada. 
E há tantas vidas que não me preparo para ti. 
E agora não vejo pureza nenhuma há muito. 
Entristece-me o mundo, assim. 
E vou ao fundo do fundo de um fundo que desconheço
e tropeço na saudade e na dor, 
e neste mundo ainda, onde ambos continuamos 
a respirar, diz-me tu como posso eu fazer para 
matar este sentimento? Dizes-me, por favor? 

Procurei-te em todos os outros que se me 
atravessaram no caminho. Nunca te encontrei. 
Não fizeram mais iguais a ti. 
Deitaram fora a forma, a tua forma, 
como dizia a avó Bina.
 Nem o António que é teu gémeo, é igual. 
Ninguém te superou em mim! Nunca soube amar, 
como te amava ou sentir-me amada, como fui por ti. 
Nunca! Mas tentei amá-los como se fosses tu! 
Fiz questão, estupidamente ou não, 
mas sempre com verdade, de lhes dizer, 
aos outros, aos que se atravessaram no meu 
caminho que nunca ninguém se tinha aproximado 
do teu valor, para mim! Que eras um marco histórico, 
um medidor de afetos e dizia-lhes que uma mulher 
que teve tudo, que foi imensamente feliz 
 não consegue aceitar migalhas! 

Ah se me compreendessem, mas 
só podiam compreender se também eles 
tivessem sido amados da mesma forma que eu! 

Para mim, não há, não houve e desconheço 
de onde vieste, de que planeta vieste tu, 
de onde te trouxe o Adérito,
 porque não há homens como tu! 

E Deus sabe que te procurei. 
Só ele sabe como os comparei. 
E todos perdiam contigo. 
Mas tu não estavas aqui. 
E quem perdia era eu! Sempre a perder, 
sempre a perder.

 (Talvez seja por isso que simpatizo com o 
teu Sporting. Sou das minorias. E defendo as minorias.) 

Coisas estranhas se passaram. 
Sei que o António S. é amigo dos Fragas. 
Ainda hoje me pergunto se ele começou a 
sofrer do distúrbio de pânico por ter aceitado 
trair uma amiga, no conluio de ajudar essa garota 
(não consigo dizer o nome dela) 
a afastar-te de mim. 
Sei que ele não conseguiu ganhar-me. 

E dou comigo ultimamente a pensar que 
houve algo mais do que essa lingerie recortada 
e tenho tanta pena das pessoas más, miseráveis. 
Constroem a sua própria cova, cheia de mentiras 
e ambiguidades! Quem o salva da psiquiatria? 
E até a Xana, como dizias e bem, me traiu e essa 
foi a traição mais dolorosa e danosa que 
se pode cometer! Tentou roubar-me o meu filho! 
Imagina o tamanho dos monstros que se dizem 
 nossos amigos! Quem os salvará de si próprios? 
Não querem ou não sabem fazer melhor. 

E tenho outra vez dezasseis anos, só que 
sabendo de que são feitas as pessoas, afinal. 
E afinal, continuo a ter pena de quem me quer mal. 
Triste e doentio. E Deus diz que não. 
Diz que me cura, e que sim, tenho que abrir os olhos 
e fechar portas e trancar janelas, e que me fez com 
um dispositivo detetor de fraudes, preparado para 
saber a verdade sobre os outros. E eu ainda não sei 
o que vou fazer com a verdade dos outros, 
se a maldade e a mentira continuarem a abrir rasgos 
e buracos no meu caminho. Eu sei que isto é intimista. 
E sei que é triste e doloroso. 
E deixei de me preocupar com o que os outros 
pensam de mim há muito! Os outros são os outros. 
E aproveito as folhas em branco para desgastar e 
consumir as horas e os sentimentos. 
Preciso te esvaziar em mim! Quem me leva o teu fantasma? 

Tenho-te esperado como quem aguarda 
o último raio de sol como quem espera 
no corredor da morte, o padre que vem trazer 
a extrema unção. 
Uns dias com fé e outros com devoção, 
às vezes desanimada e outras desacreditada 
tenho-me lamentado por tanto erro e engano 
e não me sinto pertença desta raça, deste planeta. 
Aqui. Estou cativa de ti. Neste plano. 

Tenho me arrastado entre sorrisos e foco 
entre destroços do lixo dos outros e a 
total ausência de propósito. 
Entre traições várias, desde então. 
Olho-te. Olho lá atrás e pergunto a Deus 
Que fiz eu para ter perdido, em simultâneo, 
o amante e o amigo, o primeiro amor e o tudo 
que só tu foste, Almerindo! 

Penso no ganga, no paiva e no cemintendes 
de Castelo, na Granja do Tedo, na Dominique 
e na Rosa, e até do Ernesto me lembro, 
que poucos se devem lembrar dele, já. 

 Quando tudo isto passar, este julgamento 
por mais um excesso de confiança nos humanos, 
 e antes de ir a Israel, ao meu destino, irei a Moimenta, 
 tomarei o pequeno-almoço na padaria do Tonito, 
quem sabe, entrarei em Castelo, irei à queijeira 
buscar um queijo de cabra. Depois, bem, depois 
irei aos Potes tomar um café, à Copinga e ao adro da igreja, 
deixarei o carro estacionado junto à garagem 
 ao lado do cemintendes, subirei ao Cabeço, 
descerei a calçada e vou parar à porta da minha família,
 e esconderei uma carta de amor dessas ridículas
 como dizia Pessoa, bem ridículas, para acordar 
mortos e sarapantar vivos, e esconderei no 
muro em frente, defronte nesse muro de pedras, 
depositarei lá o meu muro de perdas para te espantar de 
dentro de mim! Para te enterrar na natureza. 
 Quem me leva o teu fantasma?

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