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Inconsciente Coletivo

Tinha sido criada por mãe, apenas. O pai vagabundeava entre a desculpa da vivência da guerra colonial e o serviço continuado na cozinha da base do exército.
Lá, ele tinha outras mulheres. A minha mãe recebia a visita dele, e, de cada vez que ele vinha, fazia mais um filho, mas nunca ficava o suficiente para o ver sair do útero onde tinha sido gerado. Nunca havia sido por graça do espírito santo. A mãe, para além de cuidar da casa e de nós, éramos seis, até à data em que descobriram o coito interrompido, cuidava do campo areado. Cultivava legumes e ela ajudava, mas detestava aquela vida de sacrifício e pobreza, onde a mãe fazia de ambos os progenitores. Éramos 4 raparigas e dois rapazes. A irmã mais velha casou e pirou-se de casa, se áquilo se podia chamar casa. Era mais um galinheiro estendido para humanos, onde as raparigas ficavam na mesma cama e os rapazes num cubículo, onde sentiam a entrada do vento e do calor pelas frestas do teto mal-amanhado. A mãe chorava no seu quarto pequeno, onde só cabia uma cama de casal e uma cómoda em frente. Eu era a mais velha, depois da Cleide sair de casa para casar com um serralheiro mecânico que trabalhava nos grandes barcos. Ao que parece, até ia para os petroleiros longe, noutros países distantes e ganhava bom dinheiro. O destino dela era parecido com o da mãe, sem o marido perto, mas tinha aprendido mais cedo que a mãe a não trazer filhos ao mundo. 
Eu queria ter uma melhor vida que todos eles. Precisava de alimentar os sonhos. Queria ser uma senhora como a que eu tinha visto num filme, num café onde eu ia perto do cais. Aportavam lá muitos marinheiros, muitos estrangeiros. Um dia, havia de conhecer o senhor certo, o mister right. Comecei a trabalhar aos meus quatorze anos. Apanhava a camioneta que me levava para longe daquela terra. Entrava no bar à noite, por volta das dez e saía as quatro da manhã, na verdade, era mais às cinco, porque para ganhar mais uns trocos e comprar collants de vidro, eu lavava os copos e fazia mais uns bicos para esticar o dinheiro para que pudesse chegar à idade de ser uma senhora, sem filhos ranhosos atrás de mim, com o senhor certo ao meu lado. 
Um dia conheci o senhor certo e descobri que eu era a senhora errada. Tive um filho e uma filha. E comecei a viver uma vida dupla. A de mulher esposa do senhor certo e a de sempre, errada, na noite e nos bares, deambulando como um farol para que os homens tivessem sempre uma luz e nunca escurecessem. Entretanto, lá fui trabalhar para um supermercado onde cheguei a gerente, era eu que fazia as escalas dos meus colegas. Descobri que tinha mais irmãos, depois da partida do meu pai, lá longe, naquela base onde ele cozinhava, pelo menos mais quatro irmãos de alguma mulher que também tinha aceitado viver sem o senhor certo do lado. Ao fim de vinte anos de vida em comum, dei por mim a bater a porta ao senhor certo (ele bateu a porta na minha cara, depois de me chamar vadia, vagabunda, entre outros nomes de menos nobre calibre) e a fazer o que, afinal, sempre fiz, o errado. E continuei a vender-me pelos cais e bares onde a clandestinidade me trazia, mais do que consolo ou solidão, a aproximação à minha identidade. Eu nasci para ser errada. Já não vejo os meus filhos há quase três anos. Suspeito que me evitam. Sempre que os procuro, só encontro o lugar vazio dos seus corpos. Aos meus pais que já partiram, peço orientação quando estou sóbria. 
Acredito que as nossas escolhas primeiras se colam ao nosso corpo e nos reduzem a matéria e nos sugam a alma e os sonhos originais, como se fôssemos vendavais sem vontade própria. 

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