Muitos dias tem cem anos

 







Os lençóis giravam entre os dedos, mas os olhos continuavam cerrados. Ao beijar-te os lábios, encostar a minha pele na tua, era o sonho tornado realidade e, abrir as pálpebras seria deparar-me com a probabilidade do real da tua ausência. E que era o real sem ti, senão o meu maior pesadelo? Os teus joelhos continuavam ali e a minha perna entre as tuas e a vida empurrava-se para outros tempos imemoriais, onde o pesadelo não tinha lugar. Arrendei nas regiões etéreas este estúdio onde, acordado, tu compões, através da inspiração, a música que me faz vibrar e sentir todas as emoções dos deuses. Os acordes que saem dos teus dedos conduzem-me ao apogeu de um espaço profano e sagrado, onde a dualidade ganha a conotação da satisfação e do prazer, da alegria e da completude e até da estranheza que eu encontrava no tempo, que se atreveu a ser calendarizado, sem ti a meu lado. Largos dias tem vinte e cinco anos, de silêncio e impotência, injustiça e misericórdia. Com a minha dor, os deuses enlouqueceram. Entre o teu nome e o meu nem uma vírgula, um apóstrofe, nada, nada, apenas a tua respiração cálida e doce e os teus olhos desiguais. A sinfonia que eu ouvia era composta de sons harmónicos e de anjos papudos que sorriam, enquanto perdiam plumas, ruborizando mediante os nossos avanços de prazer. E tu és o nome de todos os astros, de todas as ruas, de todos os lugares habitados pelos homens apressados, correndo em direções opostas, e a tua inteligência é a galáxia distante onde me refugiei. Despertaste o Verão na minha pele que havia morrido na tua distância e Vénus corre, alegre, recriando fontes e rios murmurantes, despindo malícias e sussurros, incinerando o tempo com os teus dedos que sobem e descem escalas e se satisfazem na criação. A criação, meu amor, os canaviais, os bosques em delírio e almas inquietas, as sanchas e o rosmaninho, a urze e os ciprestes se agitam, entre sorrisos e gargalhadas, entre os galhos das árvores e o canto dos pássaros que trinam, acompanhando os teus solos em crescendo até a apoteose. E a paixão escaldante dos teus acordes, mi, sol sustenido e si e volves ao murmúrio de dó menor e o meu peito estremece, o sol mantém-se e os levantes do tempo enaltecem a pausa entre a música e a ablação dos teus olhos, dos teus lábios, das tuas mãos, de todo o teu ser na minha vida. Retorno a Ítaca, sem receio e sob escrutínio. E já vejo desalinhados, desmoralizados meus inimigos, sem chão, nem pedras e nem espadas que os possam defender da sua insignificância. Os oráculos encerraram. As profecias continuam revelando a estultícia de todos os que de danos e má-fé pediram a minha cabeça. E na Basileia, Herodíade destaca-se entre os imensos Judas que segregavam entre os corredores das ameias. Regresso ao estúdio e prometo-te que, quando me sepultares, descerei intacta e será assim, despida de enfeites e fantasias que retornarei a ti. Inteira, a mesma, eterna, desde o primeiro momento, desde a primeira vida em que te conheci. 

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