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O homem das barbas


"Se fosse forçado a descrever Madrid numa só frase, diria que os hotéis de cinco estrelas aqui acoitados não são excessivamente caros. É num desses que me refugio para escrever as seguintes palavras.

Durante muito tempo, fui para a cama tarde, na esperança tantas vezes vã de que o excessivo cansaço fosse capaz de vencer a minha definitiva incapacidade em adormecer numa posição a que nunca me habituara. Até aos 30 anos de idade, dormi de bruços: o braço direito sob a almofada, o esquerdo esticado a colar-se ao flanco; perna direita reta, a esquerda ligeiramente fletida. Seis a oito horas mais tarde, acordava rejuvenescido e habilitado a encarar o mundo com a altivez vertical de um Homo Sapiens. 

Um dia, porém, algumas semanas após o meu trigésimo aniversário, senti uma fisgada fortíssima na região lombar. Acreditei num mau jeito, um esforço causador de efeitos secundários, qualquer coisa passageira que não faria história ou obrigaria a aturados cuidados. Por uma semana inteira como estalajadeiro da dor me parecer um abuso inadmissível, procurei um ortopedista. Após ter-me colocado, com desusado tédio, algumas questões sobre a minha postura durante o sono, o médico explicou-me, sem disfarçar o enfado e com as pálpebras cerradas a três quartos, a voz gandalfiana a aspergir metafísica em todas as direções: 

Dormir de bruços é um crime cometido contra o próprio. É a posição de dormidor masoquista, que secreta e inconscientemente se odeia e ao seu corpo. No decurso da noite, o senhor Manuel vai-se afundando no colchão, por muito bom que este seja. As costas então envergam e as vértebras comprimem as cartilagens. Os danos provocados à sua coluna poderão ser irreparáveis se persistir nesse comportamento. Receitar-lhe ei uns anti-inflamatórios, para combate à dor, bem como 20 sessões de fisioterapia, as quais, espero, evitarão nova manifestação de padecimento. Sem prejuízo desta prescrição, terá necessariamente de abandonar a posição a que se habituou e assumir uma das duas: decúbito dorsal ou decúbito lateral. 

Em casa dei por mim a experimentar a coisa dos decúbitos sugeridos pelo médico como ideais. O primeiro era dormir de barriga para cima e o segundo de lado. São ambas posições igualmente impossíveis, ainda que o decúbito lateral o seja um pouco menos. O dorsal sempre esteve fora de questão: quando morrer terei tempo mais do que suficiente para o experimentar e me fartar dele, mesmo que um segundo e mil milhões de anos sejam a mesmíssima coisa para quem está morto. Recuso-me a dormir como se o fizesse para sempre, sobretudo porque não consigo de todo. O decúbito lateral só funcionava quando vencido pelo cansaço, um pouco à semelhança dos heréticos apanhados em pecado quando, exaustos, e quase exangues, desmaiavam em qualquer posição, após se verem tolhidos pela inclemência musculada dos algozes do Santo Ofício. O principal problema manifestava-se nos membros superiores: o que lhes fazer? Enfiava um braço no sovaco e o outro com a mão a agarrar o saco escrotal; um debaixo da almofada, o outro a cruzar-me o tórax, com a mão pousada sobre o ombro do lado contrário; as duas mãos coladas, como se em posição de prece, sob a cabeça. Tudo debalde. Cheguei a experimentar dormir com uma mão colada aos lábios, como se me tentasse silenciar a mim próprio, e a outra, presa pelo elástico das cuecas, a sentir o rego divisor das nádegas. Os atletas olímpicos não fazem tanta ginástica. Os contorcionistas do circo, pudessem eles deitar-me os olhos naqueles preparos, teriam inveja e vergonha. Não era por falta de esforço, mas nada funcionava. Virava-me para o outro lado. Era a mesma coisa em efeito espelho. A impossibilidade não mudava de cor e o cheiro era o mesmo. Com sorte, dormia três horas. Chegara a uma conclusão fundamental, verbalizada em monólogo, numa das muitas noites de insónia forçada: 

Os braços não me deixam dormir. Tenho de separá-los de mim."




Excerto de Da morte e outras vidas, Olavo Moreira, edições Astrolábio

Outras Obras: Se o abismo existe, distribuído pela Bertrand




 


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