Cartas que são de amor e de estriga
E enquanto te escrevo, tu que não me lês, quiçá tenhas desaprendido até de amar, tu que me estás sempre entre sinapses, descendo à aorta, sem pausas, até à safena. Que me saltas peito fora e te demoras entre os meus olhos fechados e que te espantas de medo (enquanto eu serena), de ver que o meu quarto se transformou no museu de família, do qual fazes parte, no centro, onde os bisavós e avós de um lado e do outro se distribuem pelas paredes, que vão ganhando teias aqui e acolá, sem nunca se queixarem do desleixo com que aqui em baixo me deixo, que os vejo no mesmo patamar que a ti, tu no meio deles e eles te guardando os caminhos com o desvelo que eu não posso fazer, a não ser através do pensamento que é um novelo de fio tecido que vai, feito doido varrido, de um lado ao outro, onde te finges de morto, no retrato em que te mantenho, estando vivo noutro quarto. Aqui em frente no espelho, a Cláudia e o Rui no meio, o Tomás, o Antero e tu, e penso em trazer para aqui a Carmencita, a Mima, o Viriato, e até o quadro que a Lina pintou, para retratar uma tarde na Madalena, junto ao mar, com o Rui ao lado, contando as ondas de sete em sete, pintado com estilete fino, eu e o menino que a lua anda a guardar. O outro menino dorme no quarto ao lado, a mãe menina, no quarto em frente, o xistab fechado na gaveta, para nem olhar para ele, que me dá ganas de subir paredes se o olho, se o tomo, se não tomo. Faço uma reunião de "ses" à porta encostada, só encostada, levemente encostada, enquanto me recosto novamente, fixando o teto e as paredes que um dia me viram rir desde dois mil e sete, que já me viram chorar mais de setecentas e setenta e sete vezes, bem mais do que me viram sorrir, que estas paredes são, afinal, onde dormi mais tempo, que isto era a sala e que no casamento em que estive, dormi mais vezes nesta sala onde desenhei este quarto museu, que ainda mantém a lareira aqui ao lado, para me lembrar que aqui, no sítio da cama, estava o sofá holandês onde eu descansava. Curioso medir este quarto que foi sala, que foi antecâmara do que vivo agora, com cinema no começo, gargalhadas de crianças e depois junto com o tempo, no arrastar do tempo, as crianças cresceram a ouvir discussões absurdas e ridículas de pessoas aflitas que não sabiam aceitar o fim das esperanças, o zelo da paz, a concordância, a famosa protuberância onde os seres humanos cordatos, sensatos, se desencontravam, longe dos planos traçados. Olho os meus braços, os mesmos de dois mil e sete, os mesmo de oitenta e quatro, estes que cresceram e se esconderam tanto, com receio de ocupar dimensões e espaços maiores que os outros, de ocupar espaços não pertencentes, que não pertenceram a ninguém, senão ao engano que permiti que crescesse, tanto como o tempo alimentou e regou as árvores, as minhas queridas sombras, guaridas e abraçadas nestes anos, reconhecendo a cada uma delas pelos nomes, como se dissesse rui e fosse o filho primeiro e dissesse tomás e fosse o filho segundo e dissesse kikas e fosse o gato primeiro e dissesse fredy e fosse o gato segundo e dissesse tilia fosse a folha primeiro, ou mimosa, ou pessegueiro, ou ervilha de cheiro, e dissesse o teu nome e o mundo fizesse rewind e tudo voltasse ao início, e te fizesses primeiro, que te encontrei inteiro, depois de me fazer metade, nesse começo de esperança onde o porto de abrigo me recolheu sem perguntas sem exigir respostas, entendendo que somos todos feitos de feridas e que se as arranharmos lhes voltam a sair as crostas e que nada se cura, nada se segura nos anos, a não ser que sejamos desonestos e digamos: um dia eu sou feliz. E esse dia ser hoje e ser agora.
Aos meus anseios e medos, não os vejo nas paredes, o teto mantém-se branco, inerte, o xistab fechado, na gaveta, a velha conversa da treta que mantenho monólogo: ou acabo com o cigarro ou ele comigo, e ele olha-me e eu olho-o e digo: que pena seres só um cigarro, se ao menos fosses um valente charro, uma erva dormideira, valia a pena o prazer por uma vida inteira. Por isso o xistab ganha espaço, estou a ser estratega, e ainda só no começo, agora sou uma estratega, já viste tu em que me tornei? eu que gostei sempre do espontâneo, do que acontecia sem planos, do porvir sem ser adivinhado, apenas desejado, apenas acontecido, apenas um pôr do sol a compor um solo que me irias improvisar. Hoje sou a pragmática que cisma com listas e check lists e cheque mate nas listas todas. A lista do supermercado, a lista da farmácia, a lista dos afazeres, como a lista de deveres se impõe à dos prazeres que não acontecem, a não ser com o café escuro e amargo pela manhã, no silêncio da cozinha, enquanto os gatos me olham e alguns ronronam, sabendo que na lista de prioridades, eles são os primeiros, junto com os dogs, a serem afagados depois daquele café a solo, sentada na velha cadeira, na velha mesa, na velha disposição de ânimos e de temperos que nem o tempo sabe apagar. Depois vem a lista das verdades e consequências, que com alguma paciência aprendi na indulgência do que vivi, precisa de vir o trator eliminar o joio que se amontoa, precisa de vir o sol e fixar-se para se compor antidepressivo, depois uma mirada no céu e outra nas árvores, na rede e nas armadilhas, um olhar de cansaço e de urtigas a espalharem-se pelos campos, depois os carros lá na estrada nacional afastam-se para passar as ambulâncias aflitas, a perturbarem a pretensa paz dos sítios onde ainda dormitam os mais antigos, concedendo-se o descanso aos ossos e às articulações, ambos gastos pelos dias de desafio. A máquina de lavar roupa no programa diário, o calvário de juntar a reciclagem dos frascos de detergente e amaciador precários, ao lado do regador. Contentores. A carga pronta metida nos contentores, adeus oh meus amores que me vou daqui pra fora, mas os Xutos e os pontapés não carregam o lixo para os contentores, serei eu, meu amor, serei eu, que sou a sobrante, a funcionária precária que se estende e acumula as funções de gerente e de auxiliar de limpeza, de chefe de culinária e de mãe de todos os patudos e vegetais envolventes. Sou uma mãe, um útero no mundo que revolve com os braços, como se fossem garfos, estes dedos, nas ervas oportunistas e me atiro de joelhos e peço a Deus saúde, mais saúde, mais marte em mim, mais força, mais tudo, enfim, para que me arraste e não seja procrastinadora, e quando o dia se fina, quando as tarefas terminam, que é como quem diz, se pausam para o dia seguinte, quando a mãe se recolhe para a sua condição de humana e vai descansar na cama, junto com a medicação, eu venho para o quarto museu, e digo agora eu, e abro as portadas e espreito uma lua qualquer, as constelações e em jeito de oração, ergo os meus sentimentos a deus e peço-lhe, como se fosse um ato de contrição, um ritual secreto, que me dê mais paciência, que me dê a resiliência, as condições atmosféricas pretendidas para que possa ver-te no mundo dos sonhos, no onírico, enquanto encerro de novo as portadas, me fecho entre mantas e acrescem-me listas de preocupações do dia seguinte, eu que ando a tentar praticar o mindfulness, cerro os olhos e vejo, só vejo, desfolhado e aberto, na carta cinquenta, las cartas d los mahatmas de sinnett compiladas por barker, a teosofia do idioma espanhol, e o desânimo e o cansaço são comuns a ambos, e dou por mim a mendigar o sol que sempre soubeste ser. E, para meu espanto, o quarto museu já sem luz, só com a máscara do monitor, te descreve o cansaço, mas mais do que isso, a saudade que sinto dos olhos teus pousados nestes braços que te escrevem, e onde o embaraço, do novelo de palavras entre o que penso e sinto vai revelando uma certa luz doce, que o teu nome traz, sempre trouxe ao meu final de noite. Arrasto o livro para o lado esquerdo da cama, e de pijama vestido, de dentuça lavada, de cigarro morto no cinzeiro, me disponho à última música, já madrugada e eu viro a enseada onde te espero há mil anos.
Um dia, vai ser o dia em que me vou levar ao mar, em que vou, finalmente, gritar o que um dia comecei, sem concluir, o meu grito a expandir a montanha, a parir o que me dói nas entranhas, a vomitar os enganos e as ilusões, a conciliar-me comigo, e, não admitir discussões, concessões à paz que mereço. Mas, meu amor, o pragmatismo, a minúcia, o detalhe, a racionalização das coisas só atinge algumas coisas, só abrange algumas ações, só vai exercendo espaço com determinadas pessoas e em determinadas situações porque no que toca a sentimentos, a carta de amor que é ridícula não extingue e só postula, não se confrange no radicalismo de ter de ser outra que não eu, agora. Os meus braços que escrevem, ocupando espaços vazios debitam o cerne da minha exaustão, que são saudades, um navio de neruda amplo sem vácuos, mas cheio de espuma das ondas de saudades que avançam sobre mim, me derrubando, me afrontando, empurrando a praticidade dos atos para um recôndito espaço onde não estás tu, porque tu bailas entre os planos, e claro, com a aspirina, o xanax e a atorvastatina, eu me deito para escutar a composição e aguardar o resultado das preces, que as verdades e consequências me hão-de trazer. E delicadamente, te beijo a fotografia, te guardo debaixo da almofada ao lado, te espreito uma vez mais e me deleito, me deito na fantasia de acordar noutro lado, noutra latitude, onde postergo a vida toda, para te encontrar onde me deixaste, um dia. E só agora, me despeço do museu dos meus retratos, e me deito contigo por companhia. Que as cartas de amor e de estriga podem ser mais ridículas que todas as cartas de amor. Fernando Pessoa viveu o estupor do amor platónico. E em sua homenagem, te deixo mais do que um trecho dos seus poemas, o amor ´uma companhia, só para ti:
O amor é uma companhia
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
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