Cristo desce pela chuva

 





Hoje lembraremos a cruz simbólica da sua morte. Nós que não somos católicos. A minha mãe agnóstica, o meu filho ateu e eu cristã. Cristo está em mim, como eu estou na vida. Que sem paixão, não há nada no mundo para ninguém. A graça do amor e do perdão descendo pelas gotas copiosas de chuva, querendo lavar o mundo da expiação. O sangue derramado do cordeiro que há-de vir tirar o pecado do mundo. Porque não hoje? Que se tem feito tão tarde. Sexta-feira de paixão. Hoje receberemos o compasso das horas lassas. A cruz dos tempos medonhos. Antecipada a graça. Eis que abro as janelas e as portas. É Cristo a visitar-nos.

Chove copiosamente. Já tomei o café. Enquanto divaguei os olhos pelos lagos do lado de fora, entre as ervas curvadas pelo trator, no tanque, na piscina amovível, cheia até à pinha, a lembrar-me que o caçador de Sóis já está na marcha dos céus e eu ainda por cá me encontro, sem saber dizer adeus ao mundo e nem encontrar nele oiro como canta o Abrunhosa, que nem rosas brancas e nem rios de oiro, é sempre o mais do mesmo, excetuando a música, excetuando os peludos e os milagres de Deus nos meus sonhos, a guiar-me no escuro, o mundo é ainda uma caverna análoga à caverna de Platão. Por que raio me esqueceram aqui, porque não me enviaram o salvo conduto que me permite observar tudo de um ponto mais alto? É porque ainda alguém precisa de mim, para inventar uma música que fale mais alto da necessidade do amor como base de tudo, ou então, porque me querem ver mostrá-lo com palavras, atos e eu acordo-me por dentro, para te lembrar a ti, que me escutas, que escondes e ocultas que também pra ti, o amor calado pode ser revolta, uma fera à solta, um caminho sem volta, na estreiteza de um muro, onde subimos para vislumbrar a natureza e ela, na sua mansidão e generosidade, nos devolva intacta a forma de ver o em volta e o dentro, o acima e o abaixo, nos faça encontrar de repente o motivo que faça a montanha se mover de sítio, que faça o coração se comover no intento de dar substância e fundamento a tudo o que trazemos connosco, depois de todo o sofrimento, do choro, do lamento, do triste arrependimento, da nostalgia e do vento, encontrar só um pouco, poucochinho de fermento e aumentar em doses homeopáticas, o tal destino que capricha e não desvela no tempo que queríamos, o que vem depois daquela dor, depois da destruição de alicerces, depois de todos os domingos pausados, de todos os prazos vencidos, das incertezas tornadas ansiedade, o que vem, de verdade, depois de todas as correntes rebentarem o que contraímos e guardamos, o que vem de uma esquina da vida, além do que nos é permitido ver, e o mestre esconde com alguma traquinice e nos faz crer que a vida é um plano abstrato, onde inserimos, escrevemos e depois circunscrevemos a palavra, a linguagem, o ato de ser-se depois do sentimento, um ser humano autêntico, depois sim, depois, quando houver motivos para a alegria, quando atingirmos o pico da ilusão, depois de cairmos no chão, com os nossos sonhos amassados, condensados numa mão, dirá vamos, vamos então e nós vamos!

E enquanto não formos, somos só cruzes e tormentos, pensamentos, ações desconexas, inspirações e alguns versos que vamos vivendo até então. Até à partida que então se mudam relógios, tempos inertes, se despejam estações, primavera e verão, na mesa de todos, ou então, de sobremesa, pairando como incerteza, nos despejarão um pouco de outono, a continuação do inverno ou de castigo, só a continuação da eternidade a sobrar-me neste dia, só o café a faltar-me na chávena, só o cigarro a queimar no cinzeiro e a lembrar-me que é sempre tarde para sorrir, é sempre cedo para partir, que o meu riso parou por enquanto, que a terra aguarda o pranto que me virá vencer. E só quando feliz ou incapaz de vencer o coração, direi todas as palavras, repetirei todas as orações e preces, direi não voltes ou direi regresses, ou impedirei os meus lábios de mendigar a tua volta. E só então, na consciência da realidade, me darão as tais alvíssaras que me permitam partir sem sentir saudades, sem deixar saudades, sem qualquer cruz que me tinja a marcha que há-de chamar-se, ao invés de alegria, uma qualquer ode de plenitude e que vá sem nome, porque doer, despensa nomenclatura. A cruz vem sempre, a cegueira muito antes, que venha então esse excesso de claridade romper o nevoeiro, cortar a ilusão, o cordão que me prende a esta insanidade! Que a música cresça, que a vida resplandeça de botões de rosas e jasmins, de todo o tipo de flores, que seja primavera, enquanto tu cá estiveres e eu puder apreciar-te finalmente, vendo-te de um outro ponto, e me regozijando por a tua alegria ser a minha alforria e saber a liberdade. Ressuscitarei da cruz e vou deixar-me embarcar naquele pontinho de luz, entre a vida e o resto que me encerra, nesta pesada corporeidade. Em jeito de postergação, chega Buckley unindo o fogo às águas. 

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