A "perfunctoriedade" arrasa a humanidade

 




Hoje é domingo no mundo! E sorrio, não porque me sobejem os motivos, mas porque pensar "domingo" é lembrar-me do Sérgio Godinho, que é um homem do Norte, direto, frontal, otimista, lutador, idealista e um pouco paradoxal neste departamento, porque lhe encontro nos seus maneirismos um sarcasmo elegante, com propriedade. É lírico e poético, é rico de preciosidades que não podem ser avaliadas por agência nenhuma de Fitch's, o Sérgio, embora não sendo meu amigo, é meu amigo sem saber. É cá de casa, muito mais do que qualquer parente ou conhecido. Gosto dele. Sempre gostei. E há pessoas que esquadrinhamos o porquê da empatia ou da ausência dela. Com ele, sabe-se porque sim ou porque não! E duvido que haja quem não ou quem nunca!
Grão da mesma mó. Sou grão dessa mó que é livre e que se está nas tintas para as "perfunctoriedades". A propriedade adjetiva do que é raso, vazio, aparente e cheio de iludências. 
Esta é uma crónica de confissões e absurdos inofensivos. Para quem me lê, bem vistas as coisas. Para mim, foram ofensivos, sem nunca terem deixado de ser absurdos que atribuo à pouca idade que tinha na altura. Era uma miúda, caramba!
Um dia, eu devia ter dezoito anos, ou talvez mais, dei por mim, estava a trabalhar numa editora, a segunda e última (e eu que pensava que tinha nascido para criar e gerir editoras porque esse era o meu nome do meio), porque a primeira foi a Simão Guimarães e Filhos, no Largo da Maternidade, da qual só guardo adjetivos belos ao editor, porque tudo o resto me foi perfunctório. A segunda editora, essa já extinta pelo tempo, a antiga Editora Asa, a velha "Asa", não na casa mãe, nem na Livraria do professor, apenas num departamento pequeno e dedicado, o grupo dicionário, em Mártires da Liberdade, levou-me a um dos mais feios sítios da humanidade: o da humilhação! Era processadora de texto no dicionário de português moçambicano e se trabalhar com "sumidades" linguísticas como sejam o dr. M. V. e o dr. C. não fossem lá essas coisas, porque éramos obrigados a lidar com a pequenez do nosso nome e a mesquinhez de personalidades abusivamente "detalhistas", por outro lado, dava gozo aprender outro dialeto na voz e na gargalhada generosa e autêntica da dra L. F., a co-autora deste dicionário. 
O grupo dicionário era um apartamento duplex, digamos assim, composto por vários cómodos: o escritório grande e comprido a que eu chamava de plataforma da língua, onde se alojavam os autores deste dicionário e não eram mais que três ou quatro, sempre encafuados na sala comprida e estreita, a nossa sala, dos processadores e corretores de página, a cozinha com o seu exíguo micro-ondas, máquina de café e frigorífico partilhados, o pequeno e sempre limpo wc e o escritório da pessoa (chamo-lhe assim, embora me restem muitas dúvidas, mais de quarenta anos volvidos, se ela era uma pessoa ou já um hibrido ser) que era quem tinha sido escolhida para gerir o nosso departamento. Se não nos sobrassem tantos motivos sociais, políticos, psicológicos, etc para inventar um vocábulo que definisse o que menos gostamos nos outros, no todo, ela seria, a meu ver, claro está, uma pessoa perfeita a quem chamar perfunctória. A Pru entrava e saía do seu gabinete, como se fosse uma criança com um brinquedo novo. Uma das suas muitas funções em que era altamente competente era a de recorrer a uma agenda, eternamente em construção, de aniversários de doutores que tinham mais poder que ela, para "parabenizar" e dar um agradozinho, um cartão de festas felizes, enfim, seria mais uma espécie de secretária do diretor. O marido era o melhor desenhador de cartoons da velha editora na altura e acredito que as suas potencialidades curriculares vieram com carta de recomendação do esposo, que não vou dizer o nome porque nem sequer é substancial, para este meu intento de vos contar a baixeza que cometi. Ela era toda afagos e gritos de menina mimada e aparentava gentilezas, mas na verdade, era uma jiboia, daquelas que deviam ser mantidas a sete chaves (e chaves atiradas longe, não fosse dar-se o caso de se evadir e multiplicar). Uma das funções a que ela não dava importância sobrava para mim, eu que era somente uma processadora de texto; quando descobriu que não passava nem um erro entre os meus olhos, logo se aproveitou de mim e eu passei a ser corretora de texto, sem ganhar um tusto pelo acréscimo nas minhas tarefas. O que estava mal, a meu ver e foi criando um bichinho de estimação dentro de mim, não era raiva, era tão somente irritação! Adulava todos os que lhe poderiam trazer benefício e menosprezava todos os outros. Entrava e saía às horas que lhe apetecia e quando um dos autores a chamava a atenção pela falta de trabalho ou de rigor, fingia-se preocupada e incrédula e depois descontava nas processadoras. O amor à camisola eu já tinha, porque sempre fui rigorosa no trato da língua (pelo menos, era assim que me via) e amante de letras. Alturas houve que, pela pressão da editora mãe no desfecho do dicionário que era necessário publicar, foi necessário cooptar vários elementos para auxiliar no processamento de tanto texto e assim, nasceu um grupo novo que funcionava depois das 17h e que ia até às 20h que era um grupo de jovens e menos jovens que recebiam à página, que passavam recibos verdes, os chamados funcionários precários que quanto mais texto introduzissem, mais ganhavam. Eu fiquei a dirigi-los. Primeiro, porque confiavam nos meus olhos de abécula para não passarem erros gramaticais e ortográficos e depois porque todos tinham casamentos e filhos e andavam a concorrer para tribunais e outros sítios onde ganhavam mais e queriam era que o dicionário implodisse. Numa dessas alturas, em que não havia outra forma para entregar o IRS, senão indo às roulottes, dispostas na Avenida dos Aliados, tive que sair mais cedo, a fim de poder entregar a minha documentação. Fazíamos fila pela avenida abaixo e outros pela avenida acima e, mesmo assim, não tinha conseguido ser atendida. Recebi uma senha com um número que deveria apresentar no dia seguinte na mesma roulotte. Ou seja, teria que voltar a sair mais cedo. E assim fiz. Mas na minha agenda de secretária ficou registado que não me ausentei, ou seja, não descontei as duas horas e nem as do dia seguinte. Porque, para além de não ganhar à página e sim mediante o contrato que me vinculava à empresa, ainda desempenhava função de corretora que não estava estabelecida em contrato e nem retificada no salário. A "minha chefe" perfunctória é que recebia os louros de tal função, mas quem vergava a mola era eu. Nessa altura, a dita cuja queria introduzir o irmão dela à força, porque ele andava a vender preservativos e a fazer publicidade à marca em festas e ela queria dar-lhe um destino mais favorável. E se bem pensou, melhor o fez. 
O grupo noturno desejava era uma vinculação com a empresa, e eu compreendia-os, não gostavam de trabalhar a recibo verde e ficarem na vaga, aguardando que a Asa voltasse a precisar deles, portanto, denunciaram que eu não só me tinha ausentado para as roulottes dois dias seguidos, como ainda tinha registado no meu livro que estava presente. E estava. Virtualmente, era a minha password que eles usavam, para introduzirem texto. Na bela segunda-feira, pós entrega do IRS, cheguei pontualmente ao meu local de trabalho, piquei o cartão e tinha uma espera militarizada dentro do grupo dicionário, no qual até as colegas que trabalhavam comigo, todos os dias, bipolarizavam entre elas sorrisos de contentamento e esgares de pesar. Perfunctoriamente ou não, a inveja é um mal generalizado. A Isabel (eram várias as Isabéis, mas eu só confraternizava com a mais nova, que era mais velha que eu) disse-me entre dentes: Vais ser demitida. A Pru está à tua espera no gabinete e já vomitou o que fizeste para todo o grupo dicionário. E eu perguntei à Isabel: e que foi que eu fiz? Ela respondeu-me entre dentes outra vez: sabes que o Pedro, o irmão dela quer vir para aqui trabalhar, não sabes? E eu, entre curiosa e incrédula, só queria saber o que é que isso tinha que ver comigo! 
Pousei as minhas coisas na secretária, vi-as sorrir entre dentes e fui enfrentar a fera híbrida. 
Perguntou-me se eu sabia da gravidade dos meus atos. Acenei-lhe que não e disse-lhe: em primeiro lugar, quero saber que atos foram esses, porque estive ausente no fim de semana e estou a chegar agora! E ela desatou aos berros, que eu estava a defraudar a empresa, que tinha me esgueirado por dois dias seguidos durante o expediente da noite do grupo dicionário e que isso era um crime e que até podia dar cadeia! Porque eu simplesmente não tinha cortado as horas em que tinha estado ao frio na avenida dos aliados, aguardando receberem o meu irs, ao invés de estar no grupo dicionário a fazer o trabalho dela. O da correção e o do controle dos precários. Percebi tudo. Não retroquei. Não gritei. Não revidei. Não nada! Devo ter ficado branca ou combalida apenas, porque consegui ver alegria na humilhação da híbrida e, sobretudo abismada por aquela traição perpetrada pelo grupo dos precários que tinham razão para quererem o meu lugar, estivesse a ser sumamente apoiada pelos esgares das mulheres que trabalhavam comigo diariamente, mulheres maduras (eu era uma menina) e, no entanto, tão medíocres, que passavam o dia a apontar a inutilidade da Pru mas na hora da desgraça, fodiam era as iguais a elas! O meu primeiro embate com a solene hipocrisia (e não estou a dizer que o que fiz estava correto ou errado) mas se querem cortar as unhas rentes, devem ter em conta que eu deveria estar a receber acima das minhas colegas introdutoras de texto e nem sequer, por amor à camisola, assumir a responsabilidade de tomar conta de um grupo de precários que executavam funções à página na introdução de texto, para, depois pagar com o meu corpo a correção dos textos deles! Saí dali sem delongas! Vagueei pela ribeira, tomei café no Capélio e fui ter com a jurista D. G. Ganhei o embate judicial! A Editora Asa, não só tinha que me readmitir, caso eu decidisse ser readmitida, como, se se desse o caso de eu optar por lá não mais trabalhar, ainda tinham que me pagar os meus direitos. Escolhi o meu caminho. Não aceitei ficar com o meu lugar. Não pelo trabalho em si, pois gostava do que fazia. Sobretudo pela "perfunctoriedade" daquela amostra social de maledicência, inveja e solene hipocrisia. Curioso que, não obstante nunca mais me deparar com as abéculas com quem trabalhei, inch'alla, vim encontrar sua sumidade o dr. M. V., anos mais tarde, decrépito e continuadamente pequeno numa mesquinhez de dar dó. O mundo dá muitas voltas, mas a música e a língua escrita salvam-me sempre das vicissitudes (vazios, as iludências aparudem) que o mundo dos outros me dá! Neste domingo, com ou sem Sérgio Godinho (eu é com) tenham um domingo pra lá de bom e não sejam perfunctórios porque disso já temos de sobra! E se forem híbridos, certifiquem-se que a vossa esterilidade não apanhe ninguém no caminho da ascensão, whatever that means to you!




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