O arcano da ceifa

 




Seres embrutecidos e destituídos de graça divina. Esta destituição advinha da escolha, do livre-arbítrio, da opção na senda da escuridão e nos lamaçais do ego. A amostra que lhe tinha sido dada a vivenciar era, para além de extensa e peculiar, e com algumas variáveis, uma imensa vara de porcos.  E porcos, todos os que vêm para além da ilusão sabem, não apreciam pérolas. Não as distinguem de bolotas e do chiqueiro em que se mantêm.

Era tempo de fazer o caminho inverso e ela obedecia. Não era um processo maquinal, porque a alma não se compadece de maquinismos. O ir dentro era um processo que ela conhecia muito bem, pelo percurso sinuoso que vivera. A vida não lhe tinha oferecido uma autoestrada. Se com doze anos, já sabia que a morte era a elevação da alma e do coração ao amor incondicional, através da sua solitude, nunca receava no ir dentro. Sair fora era-lhe muito mais penoso. Mas desta vez, este ir dentro era uma desconstrução. Porque significava que, ao dar o seu melhor, sempre, havia chegado à conclusão do que lhe diziam sempre os seus guias: o ser humano traz pactos e escolhe as fugas. Se o caminho é de ascensão para todos e se o próprio livre-arbítrio era garantia e, simultaneamente, motivo para se fugir ao que se viera cumprir, era agora tempo da pesagem das almas. A matemática de Deus. Ela conhecia a alma das pessoas, mesmo com a roupagem e imensa maquilhagem que usavam para viver esta densidade. Sempre soube. Sim, a sua alma sabia porque lhe tinha sido destinada a dor de o poder ver. E de auxiliar na retificação. Mas os seus idos lhe sopravam constantemente ao ouvido do coração: querida, não te dês assim, olha que não mudas ninguém, e se os salvares ocasionalmente, te usarão, te trespassarão sem dó nem piedade. Não podes salvar quem não quer ser salvo. Porquê a teimosia? Porque continuava teimando que se conseguisse entregar mais amor, se lhes oferecesse a sua perspetiva do todo, faria sempre alguma diferença. E fazia, ela estava certa, mas fazia no sentido inverso. Tal como os guias lhe diziam. Usavam-na, a matéria era densa e obscurecida pelos desejos imaturos dos humanos. Desejos e segredos, invejas pequeninas e mirabolantes, que não eram apaziguadas pelo seu esforço de acrescentar amor ao todo. Ela era assim, mas não podia transformar ninguém para se melhorar. E então, nesse regresso a casa, na procura da sua paz interna, na osmose necessária para a continuação da sua missão maior, dos imensos que se lembrava, abençoada pela dor de dar as costas ao seu propósito consciente, o processo era agora outro. Na posição de enforcada, o resultado era menos bonito e acolhedor, menos floreado e mais factual. As pessoas não tinham salvação, mas mais do que isso, queriam sempre oferecer-lhe em reflexo de agradecimento pelo bem que ela tentara fazer sempre, todo o mal e de preferência com efeitos imediatos. Mais Cristo que Cristina, todos, invariavelmente, encontravam desejo interno no seu mal-estar, e a que duras penas. E quanto mais dor soubessem que ela sentia, daquelas metálicas e atrofiadoras, mais contentamento sentiam e mais desesperança na humanidade lhe provocavam. Eram pequenos e feios. Assim, este regresso tinha a tonalidade diferente de ser no sentido de auto-preservação. Os seus guias sempre lho disseram e ela tinha se recusado a aceitar. 

O remanescente deste processo que sempre havia sido feito para purificar a sua constante e contínua vontade de não desistir, não obstante as nódoas negras internas, agora ganhara essa nuance definitiva. Auxiliar sim, sempre, mas apenas aos verdadeiramente necessitados do seu auxílio. Limites. E com as devidas distâncias. sem ceder a sua energia e luz. Não haveria mais desequilíbrio, entre o tanto que dava e o tempo que se expunha nem a constância desse amor incondicional e unilateral que ela tinha à fonte. O despertar, como os grandes despertares internos, são sempre dolorosos, porque nos obriga a ver os seres e os fatores e a repensar a abordagem. Este despertar levara-a à lista. Não à lista de Schindler que seria a vida toda eternamente dolorosa e incomparável. Todos os seus conhecidos, a quem se habituara a olhar como seres regeneráveis espelhavam, só agora, o seu enorme desinteresse e aceitação de que não mudariam e, se o fizessem, ela não queria realmente saber mais. Derrotada. Deixara de lhe importar se as dores que haviam vivido tinham justificação e ancoragem no agora ou nos entretantos que a vida lhes prepararia. Não olharia para trás. 

A lista era extensa, significativa. E foi nesse exercício que se deu conta que não sobravam sequer os seus mais próximos, cujo afeto embotado os impedia de olhar para ela com os olhos de amor. Não havia amor, ao contrário, havia ausência dele nas suas variantes mais ilustrativas de interesse e crueldade. Não sobrara nem a progenitura, nem o irmão de sangue. A lista tinha os seus nomes, tremidos, chorados. Tentar sempre o mesmo amor incondicional e receber resultados sempre tecidos de traição lhe permitia agora olhar, cada vez com mais distanciamento que não era particular a ela, que não era, portanto, pessoal esse desequilíbrio de não se melhorarem, era próprio da condição humana, da miserabilidade afetiva e do lobo mau que alimentavam. Logo, do livre-arbítrio de cada um que compunha esta massa que de humana ganhava só o nome da aparência. Uma formalidade. No conteúdo, eram desumanos e mutantes no seu aspeto mais real. Olhava para cada um daqueles nomes, desde os próximos aos que tinham circulado às vezes mais próximo, outras mais distantes. Todos diferentes, mas todos iguais, numa perversidade que ela tinha desistido de mudar.

Protegia-se agora. E a distância não era só proteção, era já desinteresse e aceitação. Esta diferença processual demorou ela cinquenta anos para chegar, cinquenta anos para desistir de mudar o que só poderia ser mudado por cada um. Mas que eram cinquenta anos medidos a pulso aqui neste planeta, neste espaço exíguo onde se movimentara, sempre de peito aberto e transbordante por amor ao próximo? Era meio centenário, mas mais do que isso, era toda a sua vida de expectativas em chegar a um resultado diferente, sem ter alterado a forma de o fazer. Sempre doando o que era mais bonito de si, a sua vitalidade, a sua entrega e a sua humanidade.

Deus havia garantido a intervenção e o seu dedo iria pesar as almas de todos os que haviam desferido todo o tipo de golpes. A estrutura que eles haviam querido incinerar era agora incinerada pela dimensão superior, mas com requintes de inesperado e dessa estrutura que ela já não queria preservar, iam parir-se todas as mentiras, todas as inverdades, todos os atos mesquinhos, tão apropriados dos que sugam a vitalidade alheia com propósitos escusos e sempre encontram no outro uma espécie de escada de oportunismo e de má-fé para se perpetuarem. 

O tempo disso acontecia agora. Que para a fonte, cinquenta anos de entrega e amor à causa de melhorar os semelhantes era um sopro e que ele viria agora, de rompante para todos os que participavam conscientes ou inconscientes nesse processo de roubar a luz a uma tocha verdadeiramente humana. Era tempo de justiça e de colheita. A ceifa era urgente e necessária para o bem e preservação dos que traziam continuadamente o amor, como água, aos desertos inóspitos e desvirtuados da terra. Dos que nunca desistindo dessa missão, estavam continuadamente a ser alvos de ataque. Esta ceifa para o Todo chegara com a Torre e com o alvo de proteger os trabalhadores da luz.

Bem vistas as coisas, cada um na sua pele (de lobo ou de cordeiro), e aos olhos do divino, os princípios básicos do bem do todo estavam a ser invertidos há muito na desumanidade global. Numa escalada desenfreada da obtenção e da subvenção dos valores. Não era só danificando os que trabalhavam para iluminar o todo, era ainda na tentativa de apagarem a luz interna dos que traziam na testa o sacrifício em prole do todo. 

Não era só no propósito de não fazer o mal, mas nunca deixar de fazer o bem, sem olhar a quem. E sobretudo aos que nos queriam mal. Esses eram os mais precisados de luz. Mas de uma outra forma. Não acedendo mais à minha energia. E o corte havia sido feito. Era, então, tempo, de se iniciar a ceifa e distanciar o coração dessa pesagem de almas que, de inglório já nem o nome de cada um restava. Uma massa disforme, densa, concreta e nauseabunda. A ceifa iniciava. E eu só tinha que aceitar a equação de Deus. Ele é o meu Mestre, o meu apascentador e a minha consciência. E foi com os olhos D'Ele que vim a este mundo! Não foi este o resultado pelo qual lutei cinquenta e cinco anos. Nem foi a vontade de Deus. Foi escolha vossa!

-Pai, faz o que só tu sabes fazer! As nossas vestes de cristo já foram incineradas! Que a tua vontade se cumpra!

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