A mão que embala o berço & o despejo
Antes de ir à Batalha, andei a lavar roupa à mão, a colocar cordas novas no varal, as formigas invadiram, pelos férreos caminhos, os falos rumo à videira. O Jeco tinha energia para dar e vender, amansou quando lhe pespeguei meiguices no focinho, no queixo. Varri o pátio carregado de folhas e pétalas de rosa vermelhas e velhas, como eu, deixando, pela cor, antever os dias de viço que correram rápido. Que as flores possuem um tempo de vida curto. Eu e o Jeco vivemos mais, mas não melhor, quero dizer, não melhor pela qualidade das rosas que desabrocham assistindo a todas as madrugadas, aos orvalhos, a todas as luas gibosas, novas e cheias, a todas as tormentas e, talvez por isso, cresçam e embelezem tudo à sua volta. Um dia, já fui uma flor. Hoje sou só o caminho do pólen. O Jeco não. Continua a ser mel, preto e castanho, alto e magro. Belo animal. Somos todos animais. Alguns são menos belos, talvez pela rudeza das experiências vividas ou talvez por serem fel, dentro, ou talvez porque se façam acompanhar por seres menos nobres. A nobreza é exigível, tanto assim é que, aprimoramos-mos para a perfeição que não existe.
Não dei por aqueles seres entrarem. Mas entraram. O senhorio e a mulher. Soturno, uma conversa em surdina, uma manobra táctil aos meus sentidos. Eu sabia. Sabia, sim, eu já sabia do fel. Procuro, eternamente, o mel. Quiçá, por isso mesmo, por entender que uns somos doces e outros agrestes.
Enquanto trocamos algumas palavras (outras foram silenciadas, só lidas pelo olhar habituado a ler gestos), os olhos do senhorio fugiram para a fruteira onde as tuas bananas, deitadas, amadureciam. Sempre gostaste de bananas maduras, desde bebé. Com bolacha maria e sumo de laranja. Fazia-te essa papinha o teu pai. Já não tens pai, como eu.
O senhorio é arrogante, frio, a raiar a hostilidade. Um semblante que me confundiria, por certo, se tivesse chegado ao entardecer. Talvez tivesse lido tristeza ao invés de prepotência. Sei que li tudo, os gestos dele e os dela, fingindo uma meiguice que não possui, interesseira e, tal como os homens das gruas, que tanto gostavas, manobrista e ardilosa. Do senhorio diria conformado à sua covardia. Foi covardia? Não sei. Já não sei ler pessoas como antigamente. Antigamente, o meu rigor acrescentava-lhes mel se lesse uma nota dissonante, um dó menor. A nota do ré menor fazia-se obrigatória agora, marcha à ré, carregado na mão esquerda sem pausas, vindo, agora, acompanhado por uma oitava nova. De dó maior. Não há sustenidos e nem bemóis. Foram todos ao circo. Aos tropeços pela escada acima, eu e o Jeco, pudemos entender a dialética deste novo requiem. Feito à medida para nós. A mamã boa foi despejada do sótão para a cidade aberta, procurando anúncios, nas varandas, nos edifícios comerciais, tonta de ler pessoas, desejando ler livros, anúncios e parangonas onde se pudesse ler: aceitam-se animais. Não havia mais o que fazer. O soturno Mozart ou o paupérrimo, de triste, Brahms? A escolha ficou difícil. A humilhação estava escrita em todas as partes. Com um agá maiúsculo. Irreconhecível.
Para onde vai todo o amor, para onde foge a memória quando os gritos se calam na boca, quando as palavras se distorcem, quando a humanidade é cativa dentro das paredes, debaixo do chão, sumindo pelas janelas entreabertas? O Sol dizia-me que ainda tinha tempo, antes de escurecer, para procurar mais duas ou três ruas, ali, pela Batalha. Sentei-me nas escadas da igreja. Voltando as costas para a ostentação religiosa do edifício.
Entrei num dos cafés, das imensas esplanadas, alinhadas, lado a lado, pela concorrência comercial obrigatória, que debaixo do sol, todos têm lugar e falei com os senhores do interior. Deram-me um papel, fizeram-me sentar numa mesa interior e disseram: escreva o que pretende. Escrevi. As palavras regurgitavam dentro de mim, como fontes onde as minhas mãos fingiam ser tapumes e nasciam mil pequenas fontes entre os meus dedos, letras e palavras desavindas. Deram-me um bloco de folhas e serviram-me uma água, sem que nada pedisse. Então pedi café. O jovem Tony, assim se chamava o funcionário, me disse que sairia de seguida o café e uma natinha que era oferta da casa. Sorriu-me e eu devolvi-lhe o sorriso, embora triste, saiu natural e curto. Voltei de novo os olhos para a folha lisa em branco. E então, escrevi sumariamente, aquilo que não consegui escrever na primeira tentativa. Procuro habitação com espaço para pessoas e animais. Procuro emprego na cidade grande. Faço qualquer coisa, compatível com as minhas capacidades intelectuais e criativas. Assinei o meu nome e coloquei o número de telemóvel. O Tony chegou com o café e a nata. Souberam-me pela vida. Como se me tivessem dado água, depois de uma caminhada no deserto.
Afinal, ainda havia seres humanos. Ainda havia abelhas e, se dependesse de mim, continuaria a produzir-se mel. Não com pressa, não com displicência, nem antagonismos, nem falsos pudores. Teriam que estar reunidas condições mínimas humanas para que tal acontecesse. Deixei 3 euros em cima da mesa e entreguei a folha, já sem estar em branco ao outro senhor com quem Tony falava na porta da entrada e que me tinha feito sentar na mesa interna, por detrás do balcão. Perguntou-me: Sabe operar com computadores? Respondi-lhe que sabia de tudo um pouco, mas que ainda estava a tentar ser gerente da minha própria vida. E sim, que tinha urgência. Na verdade, mais do que urgência, tinha muita pressa, para iniciar uma nova etapa de vida. Sorriu-me e deu-me um passe bem. Acácio Meireles. Disse-lhe o meu nome: Maria Joana Abreu. O prazer é todo meu. E eu devolvi, novamente, o sorriso. Deixei o dinheiro na mesa. Voltei as costas para a saída da esplanada e entrei na pequena multidão, descendo a 31 de Janeiro. Senti passos a correrem atrás de mim. Voltei-me e vi o próprio Tony, entregando-me os 3 euros e dizendo a sorrir: O sr. Acácio vai entrar em contacto com a senhora. Agradeci novamente. E decidi ir jantar à ribeira. Uma patanisca daquelas boas, acompanhada por um maduro branco, a espreitar o rio e as gentes. Faltou uma música de fundo e eu fui buscá-la à minha biblioteca da memória e apaziguei-me ali, a espreitar o fio de humanidade colorido que descia ao cubo e subia à alfândega. Mais à frente, Miragaia, onde nasceu o meu pai. A nata abriu-me o apetite para a patanisca. A noite convidava-me ao descanso, abandonando resistências, tristezas e assombrações. Que belo dia se pôs, depois do mau feitio do senhorio a tentar toldar-me a luz. A ponte é uma passagem para a outra margem. E já tenho um pé em Gaia, outra vez.
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