Sonhos vividos & pesadelos incoerentes
Quando cheguei a casa do meu irmão, vi-o transtornado e preocupado. Entre tachos e panelas na cozinha.
-A mãe? e ele respondeu que estava no quarto, mas que não estava muito bem. Ela que sempre acordava bem-disposta nestes últimos quatro anos. Fui ter com ela ao quarto. Encontrei-a virada para a janela, perto do armário de roupas, sentada na beira da cama, visivelmente exausta e muito quieta, parada, como se estivesse num transe. Deu meio sorriso ao ver-me. Beijei-a. -Mãe, vamos tomar um duche. - Acenou-me com a cabeça e disse-me, entre dentes, não saber se tinha força para se arrastar para entrar na banheira e tomar o duche. Mostrei-lhe que sim. Sentiu-se logo melhor. Depois do duche, onde ela própria se esfregava e pedia-me que deixasse a água quente cair-lhe no ombro que lhe doía. Depois, foi o creme corporal, e vestir, para que não sentisse frio. Terminei com a secagem dos seus cabelos, belos cabelos brancos e curtos, num chanel curto. Pus-lhe um risco nos olhos em verde, coloquei baton clarinho e terminei com brincos, anéis e pulseiras. O colar com a pedra da ágata na cozinha. Calcei-lhe a sandália inglesa, e rumamos para a cozinha, já depois do meu irmão nos ter vindo dizer que o almoço estava pronto. Já na mesa, o stress do meu irmão mantinha-se, associado ao receio do futuro que lhe mexia com os maxilares e o fazia sentir tenso. Tentei uma abordagem descontraída ao novelo de emoções e sentimentos capturados, provavelmente, durante a noite. O mundo onírico precisava sair para fora e, para aligeirar outras emoções menos agradáveis, como são a tensão que se cria quando uma mãe não tem apetite, rejeita este e aquele alimento, a ansiedade e preocupação visível e pronunciada na tez do meu irmão. Massa à bolonhesa. Esporão a acompanhar. Ri sozinha, de um dos lados do balcão, oposta a ambos. Eu em frente a ele, para que a minha mãe pudesse continuar a distrair o seu olhar para o ecrã da televisão, onde as notícias de ontem passavam, como se tudo fosse novo. Exceto pela notícia de encerramento de vida de Sebastião Salgado, o fotógrafo que emprestava os olhos ao mundo, para nos dar conta da contínua fome, guerra, misérias permitidas e da falta de evolução em matéria de humanidade.
-Mãe, adivinhe com quem sonhei? Com o avô Rodrigo. - Ela sorriu. - Sonhaste?
-Sim, sonhei com ele, vivo. Elegante, carismático, bem-disposto. Eu era ainda pequena, deduzo que foi algum momento que esqueci durante a sua estadia entre os vivos, e em que éramos muitos a beneficiar, privilegiados da sua presença e ensinamentos. E passei a descrever-lhe o sonho. A sala, tal qual me lembro dela, aliás, a casa, exatamente igual, limpa, organizada e cheia de luz. Os meus olhos viam na sala, o aparador a cristaleira, superior, recheada de copos e outros cristais antigos, que passavam gerações, atravessando o tempo e sobrevivendo aos que neles tinham bebido. A mesa quadrada e larga, de família. As cadeiras devidamente colocadas de pernas debaixo da mesa, apenas a minha se mantinha fora, e os meus dedos da mão esquerda esticados sobre o napron debaixo da fruteira, contando os abertos e fechados desenhos do mesmo em algodão fino. O avô, veio dos quartos, via-se a luz no corredor devido à claraboia no teto e viam-se os baús, três baús alinhados entre cada quarto, aprumados e de tão limpos, sempre me pareceram novos. O chão em esquadria de ripas de madeira, devidamente encerados. O cheiro da cera ainda a podia sentir pelo olfato. A tia Joaquina mantinha tudo limpo e cheiroso. Quando o avô irrompeu pela sala, sem chapéu, sem paletó, apenas com o colete por cima da camisa, coçava a cabeça em sinal de incompreensão e ouvi-o perguntar: - Bina, tens a certeza de que não retiraste os cordões para lavar?
Não ouvi a resposta da avó Bina. Nem a vi, de imediato. Só quando o avô puxou uma das cadeiras laterais, no lugar onde a avó Bina costumava sentar para os almoços calmos e demorados é que pude ver os seus olhos azuis e sorridentes e vi a sua boca sorrir e o seu queixo de gigeira, único e irreplicável, a não ser pelas mulheres da família que pareciam copiar-lhe o mesmo. Ouvi-me responder por ela, avô, eu não mexi nos cordões, eu não fui, e por detrás de mim, ouvi gargalhadas. O Vitó ria junto com mais alguém que não consegui identificar. O Vitó tinha retirado os cordões dos sapatos do avô!
-Ah meu malandro! Onde estão os cordões? E ele retirou-os do bolso, sempre a rir, e dizia-lhe "Vô, deixe-me ir consigo, eu porto-me bem! O avô começou a colocar os cordões num sapato e depois no outro. Havia uma ginástica perfeita e habituada a uma forma muito própria de colocar os cordões, por parte do avô Rodrigo que nunca tinha visto em outras mãos. E fazia esta analogia com respeito aos cozinhados da avó Bina, que não havia ninguém que lhe ensombrasse os trejeitos típicos na cozinha, tudo era tão próprio dela, o belo cheiro da comida espalhava-se pela casa toda. Ao lado da sala, havia uma porta que nos levava, por umas escadas escuras, ao sótão da casa, onde se guardavam coisas inúteis ou dolorosas, esquecidas ou estragadas. Ao lado da sala, para a cozinha, havia uma copa, um banho, um hall virado para a porta da saída da cozinha para o quintal. Que era o meu lugar favorito. Cheio de flores e plantas, um tanque, logo abaixo das escadas do lado direito e do lado esquerdo uma espécie de talhão com erva curta e aparada, onde as peças de roupa branca e de algodão coravam ao sol, para serem retiradas manchas. O Sol retirava tudo, junto com a experiência da tia e da avó. Ao fundo havia uma capoeira e uma casinha onde se guardavam as ferramentas e uma bomba que eu adorava. Dando voltas, com os braços na pega larga e comprida, rodando as roldanas, um balde subia, trazendo água fresca para a superfície.
- Mãe, o avô já estava magro, excessivamente magro, portanto, destituído ou irreal do tempo último. As flores da avó perfumavam a casa no seu interior, espalhando, fora da hora das refeições, os seus perfumes pelas jarras. Havia uma matemática própria, tal como nos cozinhados da avó, na colocação das jarras, das águas que mantinham a frescura e perfume das flores escolhidas. O riso do meu primo Vitó fixou-se ao final do sonho e vi-os saírem pela porta fora, depois do enorme corredor, em que brincavam os dois, com as cumplicidades próprias para cada neto. O meu irmão perguntou-me se tinha sido sonho ou teria sido um episódio que aconteceu na minha infância e que guardei. Respondi-lhe que não sabia responder, que tinha surgido durante a noite, talvez fosse um pensamento guardado que se soltava. E eu que acredito que os ancestrais são apêndices que guardamos, que transportam o amor pelas veias da memória, nos trazendo a par com sincronicidades que vivemos, uma ligação, um elo que nos rasgava caminhos de possibilidades, para podermos ver, de uma outra maneira, as nossas mesmas vivências. Não há repetições, mas apropriações a realidades que se chamavam passado, por uma questão de organização sináptica, mas sempre acreditei, que é o mesmo que dizer, que é o que penso, que eles se mantêm connosco e nos acompanham e até nos fazem companhia, protegendo-nos, dentro do que lhes é possível e até nos guiam, se assim quisermos olhar, a tal perspetiva que nos faz elevar a fasquia sobre o existencialismo que os defensores desta corrente filosófica se vêm anuladas. Do meu ponto de vista, eles continuam a trabalhar, a oferecer-nos, a acrescentar-nos a candura dos atos e dos afetos que se prendem à forma como se realizam os feitos diários.
A minha mãe endireitou-se na cadeira, poisando os talheres, pegando no guardanapo pequeno de papel e erguendo o corpo de rosé (o vinho favorito da avó Bina), tomando em goles pequenos, para voltar aos talheres, apanhar mais um pouco do esparguete e da carne picada com o molho cozinhado pelo meu irmão e distraída, para que o simples ato de comer não a irritasse, mexendo outra vez na nossa preocupação, aumentando a ansiedade e receio que nos envolve aos dois, a mim e ao Antero, e falavam na tv sobre os candidatos ao PS, sobre as eleições legislativas recentes.
A minha mãe olhou-me a sorrir e disse-me: eu também sonhei, esta noite e lembro-me bem o que aconteceu. Eu e o Antero olhamos para ela, que fez uma pausa, necessária ou provocada, para continuar a divulgar o sonho: Sonhei com ela. A Rosinha. Eu ouvi à primeira, mas o meu irmão, ao seu lado e com este problema da surdez súbita, perguntou-lhe: com quem, mãe?
- Com a Rosinha, repetiu. - A Rosinha é a namorada do Antero, com a qual criou, nos últimos anos, incompatibilidades com um grau denso na dificuldade de ultrapassar, com ela e com outras pessoas próximas e consanguíneas. Para aligeirar a tensão que subiu à mesa do almoço, novamente, perguntei: E que aconteceu nesse sonho, mãe?
- Ela espreitava aqui na cozinha, no sítio onde estou, mas em pé, para todos os pontos da marquise e da sala. Espreitando por detrás das cortinas e ouvi-a dizer: Estou a chamar-te Antero. Abre-me a porta! Pedia para lhe abrirem a porta, mas estando já cá dentro.
E isto fez-me remeter à promessa trocada por ambos, o pedido da minha mãe e a promessa do Antero, de só a levar lá e colocá-la em contacto com ela quando se sentisse preparada. A minha mãe não queria conviver com ela. Na verdade, não queria conviver com ninguém, nem com familiares e nem com estranhos. Queria a paz que tinha na aldeia, onde só os animais, por não falarem sobre coisas inconvenientes, nem lhe lembrarem que o perdão é uma faculdade humana que deveria ser exercitada. Não queria ver ninguém, estava cansada de pessoas e na minha observação pessoal, não via com bons olhos a alegria e vitalidade nos outros, a imposição dos seus corpos na sua vida quotidiana, a lembrarem que um dia lhes foi próxima, lhes foi amiga, e, a sua própria incapacidade ou limitação física e psicológica, adensava o silêncio pouco saudável que acompanhava o que ela própria considerava contrariedades, fugas à sua vontade, imposições que recusava olhar com um olhar de naturalidade.
- Mãe, era inevitável, disse-lho. - Mãe, a Rosinha é a companheira dele, escolha dele, gostam um do outro, ela comprou a minha parte desta casa, para que pudessem estar próximos, na altura, na minha opinião, acreditei que pudessem casar (sempre fui uma espécie de cúpida ou casamenteira), pretendia estabilidade afetiva para o meu próprio irmão e simpatizava com a sua escolha. Foi, também, isso que me fez "vender" por uma esmola, a minha parte do imóvel, para que ambos cultivassem de perto um novo capítulo das suas vidas. Ele detalhista e ela sensata. Pedi perdão à minha mãe, por ter ido contra a vontade dela, que primeiro não queria que lhe vendesse a minha parte e depois me chamou burra, por lhe ter vendido a minha parte do imóvel por 35 mil euros. Foi uma idiotice, mas o que estava por detrás era a intenção de os ver bem.
A minha mãe repetia: sempre a coscuvilhar, sempre a espreitar os outros e a mandar no teu irmão! O sonho tinha sido um pesadelo. Não o meu, mas o dela, que continuava revoltada e sem conseguir ultrapassar as manchas dolorosas da relação entre ambas. Eu repetia-lhe: - Mãe, perdoar é necessário para si, sobretudo. Porque a adoece. Perdoar é uma capacidade humana. Não significa voltar a confiar, significa permitir que a saúde relacional possa produzir melhores resultados na sua saúde física e psicológica. Logo de seguida, caiu uma chamada no telemóvel do Antero e era a Rosalina, outra vez, dizia o Antero, que a irmã da minha mãe, também ela recém recuperada de uma cirurgia ao coração, pretendia saber se a minha mãe estava bem, se estava melhor.
A minha mãe também negou elos relacionais. Não sabe perdoar. Ou não consegue. Não está capaz de resolver os conflitos internos que a dissociam e aumentam as dissensões familiares, relacionais com os outros, com os quais tinha tido divergências. Tudo era hoje e agora, para ela. Nada se tinha alterado, desde o almoço malfadado, desde os últimos acontecimentos, com mais de um ano passado por ela.
A refeição terminou. Não arrumei a cozinha, como de costume, apenas levantei os pratos e os juntei, separando os restos da comida para um lado. O balcão da cozinha estava, outra vez, apinhado de loiça suja, de pratinhos com azeitonas, com legumes, com tremoços, com uvas, ao lado dos baldes que separavam os lixos. O caos não me fazia bem. Evitei olhar com pormenor para tudo aquilo, mas os meus olhos voltaram a cair na marquise, cheia de saquinhos e baldes no chão, onde havia garrafas de vidro e plástico, sacos de papel, sacos de plástico, sacos de lixo das plantas, fugi imediatamente com o olhar, voltando a sentar-me para olhar a minha mãe. Depois da recusa em sobremesa, pedindo apenas café, o Antero insistiu, a mãe mais teimosa que ele repetiu o não, zangada pela não aceitação pacifica do meu irmão, ele serviu-se de uma maçã e partiu em gomos e foi comendo e separou um gomo para cada uma de nós. Voltei ao avô. E as suas maçãs, descascadas meticulosamente, depois de partir em gomos uma pera para a avó Bina.
-Mãe, eu como este gomo e você come esse. - Ela acenou com a cabeça, mas o sorriso era de cinismo. Não comeu. Só queria café. Tomamos café, para ela com 3 colheres de açúcar, para nós, liso.
Peguei na capa dos exames médicos e pedi ao meu irmão as análises últimas que ele tinha ido levantar à Unilabs, aquando de ter ido fazer, ele próprio exames nessa manhã. A minha mãe fugia com o olhar para a novela da menina Estrela mas ergueu-se, para ir lavar os dentes. Enquanto o meu irmão a acompanhou ao Wc, eu fui à marquise, olhar a igreja e as formigas lá em baixo, as pessoas circulavam rápido, como formigas laboriosas, sem tempo para apreciar os agoras. Apaguei o cigarro, peguei na bolsa e nos exames e aprontei-me. Conduzi até ao Hospital da Luz na Boavista, em piloto automático. Mil pensamentos me acompanhavam. O maior receio era na leitura e interpretação dos exames da Eva. quatro exames ecográficos acusavam quistos biliares, o pâncreas impossível de se ver, no restante, normal. Bexiga, rins, carótidas com calcificações, assim como noutros lados, mas não eram a razão da falta de apetite e nem dos valores altíssimos e irregulares na função hepática. Quatro vezes mais o valor de referência. Quando saímos da médica, vínhamos os três cansados e, no meu corpo, o peso e a inquietação. Um mês sem rosuvastatina para analisar se seria a medicação a alterar valores hepáticos alterados. Substituir o permadoze por ácido fólico. Manter vitamina D. Se na repetição do exame daqui a um mês, estes valores se alterarem, positivamente, a médica escolherá substituição do medicamento do colesterol. E, se não, um TAC abdominal, para entender se o pâncreas ou a envolvência pode justificar a perda de peso e do apetite total da nossa mãe. Alinhavei o meu sonho com o avô Rodrigo ao meu receio do pâncreas da minha mãe, certamente. Certamente. A paciência tem crescido em mim, como uma espécie de ferramenta que vai ocupando espaço, afortunadamente. Só assim, a posso reproduzir no discurso e na forma de tentar contaminar os outros, com os quais me preocupo. A vida parece-me, neste momento, uma montanha-russa que me provoca enjoos e me empurra para uma ansiedade sem fim à vista.
Quando a distraí para comer um bolo de feijão e um sumo, a auxiliei a entrar no prédio e no elevador, vim a pensar que o mundo, de tão grande, pode encolher-se e resumir-se a uma dor maior. Sem mais personagens ou espaços, extrapolando as lágrimas para a saída possível, por detrás dos meus óculos escuros. Liguei o aparelho da música, logo depois de ligar o motor e, foi assim que saí de Costa Cabral, uma mancha escura me empurra ao limite da consternação, enquanto a música me libera para o tal mundo onde me descalço, para entrar e viver. Escolhi o terceiro cd. O fantasma da ópera. E antes de entrar no túnel na Fernão Magalhães, mudei para o quarto, Peter Gabriel e ouvi-o cantar Father, son. E enfrentei outra vez o tráfego intenso da circular, as buzinas, o calor, acompanhada pelos fantasmas todos reunidos, mas, desta feita, quem conduzia a minha energia era a música, que é o meu remédio eleito, desde criança e me serve para tudo.
O aniversário da minha mãe é domingo. Oitenta e um anos. Que este próximo seja mais leve para ela e para nós. E que a vivacidade que a caracteriza se exponha e se desenhe uma alegria num novo ano solar.
-Paizinho, retira-me este peso do peito! Que assim seja, Pai!
novos.
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