Crónica de um apagão simples

 



Olhei-me debaixo dos óculos protetores, através do espelho da montra que refratava a luz do dia, nos movimentos dos transeuntes. Reconheci a figura, apenas a imagem fraca, o esboço de quem um dia fora. Melhor dito, deixara de ser. E a fisicalidade, em termos terrenos, sabemos, é importante, é objetiva, mesmo que se perca este ou aquele membro, ou esta e aquela capacidade. Não tive falta da sereia, não obstante o tempo que havia passado sobre mim, ainda era matéria e ainda me reconhecia e também os outros, por mais distantes me vissem, em termos psicológicos e realistas. Tive saudades de quem eu era antes. Da personalidade empática e descontraída. As rugas, naquela vidraça, davam espaço a uma outra forma que, a meu ver, me havia distinguido de outros corpos, de outras pessoas, dizendo de mim, talvez até mais do que eu falando, murmurando, ou opinando sobre o tanto de coisas que o mundo sempre teve. As ocorrências, as turbulências e as vivências. 

Senti saudades de não padecer da ansiedade que é esse medo que se sobrepõe e nos sobe às costas, adentrando o corpo e a alma por contágio. Que nos questiona sobre o futuro, sobre os planos, sobre objetivos e sonhos, sobre concretizações e fracassos, sobre os outros e sobre nós. Sentia, então, nitidamente, nesse momento, o peso da ansiedade que, sabia bem, só o mar retirava circunstancialmente. Estava longe do mar. 

Sentei-me, inquieta, entre os pensamentos alinhados sobre a mudança que se me atravessava no caminho e sobre outras coisas mais pequenas e detalhistas, como sejam, calar o ronco do estômago. Não mora a fome dentro de mim. Existe uma fome que não ronca, mas morde silenciosa, pela calada do dia e me entretém até tarde, até ao efeito alprazolante. O de morrer novamente, nas noites sucessivas e diárias, pela exaustão e cansaço. 

Contemplei a ementa. Fiquei-me naquela esplanada, agradecendo a sombra que me oferecia e mirando a dita cuja carta da confeitaria fast eat. Uma tosta mista não se deve comer em qualquer lado. Tem de ser de uma determinada maneira. Os triângulos cortados de uma forma simétrica, o pão aquecido até determinado grau e depois, bem, depois, existe a escolha do fiambre e do queijo. Preferi a minha franqueza de monólogo entre os demónios e os anjos a gritarem-me: cala e come. Pedi sumo sem gás a acompanhar e trouxeram-me um belo sumo de laranja natural. Nada existe de melhor que um bom sumo de laranja, espremido fresco e, de preferência, com um bis na ponta do copo, duas pedras de gelo. Atirei-me à tosta mista. Tinha escolhido bem. O cansaço começara a tornear-me o humor. Aquele sumo de laranja arrumava com o conflito interno sobre o futuro, sobre qualquer tese para anular ansiedades ou, pelo menos, retificá-las. Por agora, estava tudo em pausa. Que bela tosta mista. Olhei para a parte posterior, por detrás de mim, para a placa do estabelecimento. Ali, faziam-se soberbas tostas mistas. Havia um Deus lá em cima, a derrubar todas as minhas resistências na saída da zona de conforto. Pedi o bis do sumo, não se fizeram tardar, com as pedrinhas a derreterem-se, cantando, contra a superfície do copo. O amontoado de gente desfilava como se hoje, agora mesmo, tivessem dado início às festas populares, tal era a profusão de turistas e cores, linguajares e fonemas, máquinas fotográficas, telemóveis e mapas na mão, abertos e poisados contra os postes da rua, sobre as costas de amigos, perguntas que se concluiriam, dedos no ar, assomos de paixão, beijos, acenos e sorrisos. 

Aquele era o meu Porto, completamente tomado pelo mundo e voltado ao excesso de tudo. Peguei no segundo triângulo da tosta. Com a ponta da língua, desencravando aquelas migalhas de pão e queijo que se prendiam entre os dentes e a minha alegria renovada (a pausa na ansiedade temerosa), a fome a dizer: vês? que era mesmo de uma tosta mista destas que estavas a precisar, e tu a duvidar, pois, só ali ou acolá ou em nenhures, nunca no já, alcançarias prazer num alimento outra vez. O último prazer alimentar tinha sido um wok. E não totalmente, tinha faltado o spicy e o pistaccio. Ali, naquele agora, não me faltava nada. Já nem a parte de mim que sentira falta. Estava inteira. Apesar dos apupos nas cadeiras, dos pedestres, das biclas, das vozes mais ruidosas, do business que se multiplicava por ali, dos cheiros estranhos, nomeadamente, das velas que vinham da igreja dos congregados, da sopa que vinha, algures do tasco ao lado, da janela do andar superior, sei lá bem, o Porto continuava deslumbrante e convidativo. Esqueci, por uma hora e meia, tudo o que levara comigo entre a cabeça e o peito, a razão e a falta dela. Pedi o cimbalino, curto, e a conta, para quando quisesse zarpar, não esperar meias horas, diante da fila que se formara para os tais fast eat, para voltar ao business stressante da escravidão a que chamam trabalho. 

Retirei da bolsa o bloco de notas com os apontamentos e os telefones, as direções, os nomes das agências, dos comerciais e pus o visto em quase todos. Faltou-me resolver três coisas. Encostei-as para o dia seguinte. Uma era a agência do IRS, outra, a questão do papel que era tão grosso que nem sequer daria para limpar o cú, pois para ele exigimos papel dupla face, suave, que o nosso merece o melhor. Sempre prestei muita atenção aos produtos de bebé, porque se é bom para eles, é muito bom para mim, como as toalhitas e a própria farinha láctea, a cerélac. Ele tinha razão. O que o dito cujo senhor merecia era que lhe oferecesse aqueles documentos para, no caso de falta de papel dupla face, utilizar, à boa maneira tuguense, como nos tempos do estado novo, que o jornal era um royalty que não se podia esbanjar, cortado em pedaços. Tempos em que o cú era mais bem informado que a mente do povo cinzento e conformado. Qualquer povo que se recusasse usar o cérebro e aceitasse, passivamente, a rodela de embaraço, o ajôujo que unia as cabeças de gado e as mantinha alinhadas ao sistema empedernido, roldanas bem oleadas, para a coisa doer menos. Juntos, na pobreza e na miséria, na falta de saúde e na doença, de resto, como os sacrifícios morais e psicológicos padecidos por uma grande parte de gente em sociedades, como casamentos e outros afins sociais. 

Já tinha dado voltas ao miolo. Precisava arrendar uma casa, um apartamento, só pedia um t1 +1 ou um t2, ou até um simples t1 com uma sala escritório, mobilado, uma máquina de lavar roupa, um fogão, coisas simples, tão simples que nos esqueceríamos de ser humanos, se não existissem tais pressupostos mobiliários. Não havia. Os preços eram exorbitantes e as condições impossíveis. Lembrei-me de quando era jovem, à procura de emprego, todos os que me abriam janelas para um sonho ou para uma expectativa aprazível e sonante exigiam experiência. Como se pode ter talento, se ele foge mediante exigências como era a de dominar três línguas, ter carta de condução, ser jovem e experiente, tudo no mesmo corpo e de uma golada só? O que eles pretendiam era já a escravidão e a competição, que há carradas disso em todo o lado, como se fossem quesitos nobres para atingir a felicidade. E presumíamos nós, nem bem saídos de um estado novo, chegar a um estado velho, jovens e cheios de dissabores, de remordimentos à pátria, de esconjuros a este e aquele político que golpeavam os méritos, subiam por uma escada longe do nosso olhar e enriqueciam ilicitamente à nossa custa. A Deolinda teve uma saída nobre para esse parasitismo todo que eu vivi antes e que se vive, ainda hoje. O Que Parva Que Eu Sou, que caiu e ainda cai, como ouro sob azul, na merda das presunções progressistas de quem se recusa a olhar para o que temos, pior, olhando para o que temos e, mesmo assim, indo sempre, atrás de qualquer chico-esperto que tenha uma cenoura e no la ponha diante do focinho. Creio que nem mesmo os burros são tão asnos, como nós o temos demonstrado, na falta de civismo, de cooperativismo pela maioria, de desinteresse pelas privatizações, de completo abandono pelas causas da saúde, da educação e da justiça, pelos ideais de quem veio antes de nós, semear o trigo que comemos ainda. E é tudo, há muito, o mais do mesmo que fede. As cunhas e berbicachos, os amigos do alheio e se eu tiver alheio um amigo desses, como os Sócrates do mundo todo, já teria um belo apartamento perto da Sorbonne, onde eu poderia me inscrever num doutoramento em arte, literatura e língua mãe. Mas sou filha de gente humilde. E esta conversa toda não quer ir para patriotismos, que a minha pátria é o mundo e a minha herança é quem eu sou e que faço com essa que eu sou, em prol do todo. Muito embora a tosta mista fosse minha, teria prazer em a ter partilhado com qualquer estranho esfomeado. Porque isso está-me no sangue. 

Andei a investigar a Criap porque tem duas formações que me agradam, mas, neste momento, o meu prazer maior ainda é o de vomitar o contido nestes inglórios 24 anos de vida. Ando a purgar-me há tanto tempo. Purga daqui e purga dali, que o imodium me trata por tu e o café me sustém os sonhos. E a porcaria dos obstáculos me adia as expetativas para longe, noutra freguesia, noutro distrito e quiçá, como mandou mui bem o Passos Coelho, para outro país (emigrem, desamparem-me a loja), que neste, o povoamento dita condições inacessíveis. Sempre serei do mundo, da raça humana, mas sou tão do Porto que até nos meus sonhos eróticos tem sempre uma placa a mostrar-me onde mora a minha lilith e de que se alimenta ela. Pois bem, dos vinte euros que entreguei, recebi de troco três euros e vinte cêntimos. Não foi caro. Pedi dois copos de sumo, a tosta mista e o café. E ainda permaneci alapada na sombra por mais de uma hora e meia. Era tempo que custava dinheiro. Time is money, someone said. 

Bazei, num dar de frosques, como se tivesse sido injetada por uma mosca qualquer de pressa e de falta de paciência. Na aldeia, é o pica boi. Aqui, na cidade, procurei o vocábulo e não o encontrei, talvez me tivesse fugido na esquina, logo após ter apagado o cigarro e olhado mais uma vez, a placa do estabelecimento. Fui obrigada a parar, porque o semáforo estava vermelho e o passeio cheio de gente. Impossível transitar. E foi quando te vi. Não na minha frente, mas na surpresa de ter passado quase duas horas, vendo gente e pensando em tanta coisa e, surpresa, nem uma só vez me ocorreu o teu rosto. E isso, sim, é novidade para mim. Começo a perceber outros mecanismos que me conduzem a ti e posso atuar de uma outra forma que me faça, não enlouquecer, que isso seria em mim capicua, sincronicidades e tal e tal e sei lá mais quê. Pude, sem te querer evitar, não te recordar. Para mim, soou-me o alarme da vitória. Não uma qualquer vitória, mas daquelas que procuramos encontrar na vida, e lutamos, lutamos, lutamos, suamos, e ela, a vitória a fugir-nos, e recordei outra vez o sumo deste momento: Tudo a que resistimos, persiste. E dei graças por ter havido um casal, bastou ser um homem e uma mulher a conceberem um ser pensante, um Carl Jung, que nos trouxe tanta matéria mental e que, naquele mesmo momento, em que te vi, sem te ver, percebi que esse mecanismo funcionava com tudo, com a paixão, com os problemas, com o desemprego, com a falta de moralidade, com o asseio mental, mas não funcionava com o amor. Não se resiste ao amor. Se for amor. Passei o vermelho, mas ninguém viu, só mesmo o veículo que vinha na direção do Bolhão e entrou na zona proibida. Estancou. Eu também. E dali até ao meu bote, foram meia dúzia de passos, ali em Fernandes Tomás. E por falar em Tomás, não quero resistir às saudades que tenho dele. Gaza continua a padecer a loucura humana do silêncio mais ou menos generalizado. Mas já se ouvem gritos de insubordinação, que isto da dor contamina a mente e quem não se sente, não pode ser filho de boa gente. Lembro-vos de Brecht. E depois, do meu Tomás que é filho de boa gente. Daqui a nada, ligo-lhe. Quanto aos outros, os meus "mortos" vivos, dava o meu trono de palha aqui, na terra, por um abraço vosso, uma conversa da treta, um copo de água no silêncio da vossa fala. Que isto de ser humana, dói que se farta, caramba!

Comentários

Mensagens populares