Sem contar, que sempre nos sobram os dedos todos, quando não aguardamos ver uma alma, pelo tempo imenso do seu desaparecimento em nós, e ao contrário, do nosso próprio esquecimento das pessoas e lugares em que nos movemos, se não estivermos na mesma circunferência, estabelecida pela zona de conforto de que uns parecem padecer e outros fugir. Sem querer, nem sequer contar, encontrei o ali, na minha frente e reconheci a figura pelas suas costas, algo arqueadas, agora, pelo peso que os acontecimentos e o fluir dos anos impinge sobre nós. Não hesitei ao tocar lhe no ombro, embora aquele gesto parecesse ter demorado muito tempo a ser feito, como em rewind, numa velocidade lenta. Aos olhos de qualquer outro, talvez parecesse estudado. Não havia dúvida, nenhuma imprecisão, apenas surpresa.
- Este mundo que é um bairro! - disse lhe, assim que o meu dedo atingiu a omoplata dele e vi o seu sorriso rasgar se. - Não há mesmo engano, Laura? - Pois não me parece, Sr. Figueira! Ele saiu da fila do multibanco e arrastamo-nos pela linha de gente que desfilava entre o multibanco e a larga esplanada e foi ali mesmo que nos sentamos! Ele, de sorriso e de óculos de sol e eu de sorriso, já sem óculos! Veio o empregado que conhecia a ambos há largos anos, a ponto dele próprio se intitular um VIP card client do estabelecimento e eu própria ter começado a frequentar o mesmo, quiçá antes dele. E então sr. Figueira? Pergunto-lhe o mesmo Laura, olhe que vejo regularmente os seus familiares, mas a si, confesso que não a vejo talvez há uns quinze anos! Nem tanto, mas deve ser já há muito, porque ainda hoje passei na porta do meu professor do liceu e, não o vi. Apenas ao jeep dele, plantado no mesmo átrio e, por coincidência, pelo menos acreditei que o fosse, vi no pátio ao lado, na casa do Daniel, sair um carro com um jovem rapaz. Tive a audácia que, para mim significa nada mais e nada menos do que ser eu, curiosa e nostálgica, de lhe bater no vidro no lugar do morto e perguntar pelo Daniel. - Era o Jorge, mas claro, você não se lembra dele que era um miúdo e agora um homem! Assenti com a cabeça, só o reconheci quando lhe olhei nos olhos, enquanto o ouvia dizer que o Daniel tinha falecido há 3 anos, curiosamente, mas emendou o vocábulo, substituindo por outro que lhe desse mais força para o que disse a seguir, desconheço se está já tudo escrito, Laura, embora você garanta que sim há anos e eu até lhe encontro alguma piada, a minha Carolina morreu dois meses antes do Daniel!
- Oh! Lamento Sr. Figueira! As palavras fugiram me. Um casal tão unido e cúmplice e por isso, deduzi em análise interna lenta e dolorosa que, tinha sido aquele peso dos acontecimentos que lhe arredondara as costas e a figura, por certo! Uma vida planeada para ser traduzida no prazer das férias de verão e nos famosos PPRs que lhes permitiriam fazer o que não tinham feito, dedicados um ao outro, mas às filhas durante o crescimento de ambas. Dos PPRs sobrara ele, cada dia mais acabrunhado pelo conformismo da aceitação de tudo estar já escrito, sem possibilidade de edições ou reedições, emendas ou referendos. A vida impunha se, e a nós, cabia a remediada aceitação. Era isso que lhe estava somado, não só na figura geral, mais especificamente, no olhar distante que, provavelmente, divagava entre o passado longínquo e a distância dos dias que perfaziam os três anos da ausência da companheira de vida e do amigo cúmplice!
Contou-me o que nunca se atrevera a contar antes, da sua carolice no início da juventude que se prolongara, com imensas desculpas, a todos, à dificuldade de identificação com o sistema, ter sido filho "único" de quatro irmãos, ter nascido fora de prazo, com uma diferença de quatorze anos do mais novo e ser tratado como fidalgo, a quem todos desculpavam e mimavam. Claro, era um calão na boca de alguns e até na sua própria. A vida tinha-lhe sido gentil, e, aos vinte e sete, ainda a frequentar Direito em Coimbra, conhecera a Carolina, namorada e futura esposa, filha de ilustres advogados, mas ela frequentando uma área fora das leis, e, tal como se apelidara a si mesma com razão, era fora de lei para o membro mais próximo, o seu próprio pai. Não acabou o direito. Ele. Decidiram arrumar os trapos, depois de uma viagem feita pela Europa, a título de prémio pela sua finalização do curso em Filosofia, e viria a ser docente toda a sua vida, longe das legalidades dos progenitores. Saíra da régua, sem necessidade de grandes argumentações, provando que a paixão pelos temas e pensamento contemporâneo é que a moviam. Ele concorrera para o banco, como gerente, devido aos seus conhecimentos de direito acumulados nos anos de Coimbra, conseguira a vaga, mas a ambição é filha prematura que tarda sempre romper véus e Carolina dissera-lhe muitas vezes, Zé, se não estás bem nesse, concorre a outro lugar. Através do sogro, conseguira uma entrevista para um outro banco e aí sim, deu-lhe gozo chegar e entrar. Jardim Gonçalves foi o condutor da entrevista e travou-se ali o que viria a ser uma influência poderosa, no seu galgar de palcos interbancos.
Olhei-o e baixei o olhar. O maior risco para um idealista, qualquer um, é ver que na contabilidade dos ideais, os hippies, quase todos os que conhecia, desejavam, ocultamente, tornarem-se yuppies. A cada história que somes, existe, então, o risco pessoal de deixar cair pessoas dos pedestais, pessoas que nunca couberam em pedestais, que, raramente mendigavam alguma coisa, aliás, transpiravam projeção social e poder. Muito bem desenhados. A figura agora frágil, quiçá com alguns remorsos, por certo, que fazem parte da vida de todos nós, pareceu-me vir a par com um pouco de vergonha na confissão. Da minha parte, também. Não devemos idolatrar figuras. Torná-las impossíveis de acesso e carismáticas, alinhavadas pela realidade possível; a retidão, a verticalidade, nas escaramuças da competitividade eliminariam ideais e trariam, isso sim, benefícios e regalias desejadas secretamente, enquanto o nosso discurso fosse, invariavelmente, o de retidão e bravura, de sucesso e de esforço.
Pareceu-me que a história se tinha encerrado ali, mas não quis ser indelicada com o senhor que tinha aprendido a respeitar nas décadas atrás e que, agora, pelo avançar da idade, me sugeria quão errada eu estava, sempre, ao colocar grades e degradés, desculpando o ser humano divino. Da avó Giselda, me lembrava do ditado que a ocasião faz o ladrão, e quando a ocasião se casa com o facilitismo, e vem forrado de opacidade e privilégios, a engrenagem permite a continuação.
Ele continuou, embora o lábio lhe tremesse, enquanto segurava na chávena de café, enquanto deitava os olhos para o chão, à semelhança dos meus, que poisavam já em breves pausas, entre a mesa e o chão, permitindo-me distrair pelo meio envolvente, não pude deixar de ficar mais surpresa. Os mecanismos do assombro facilitado, passe a redundância, ainda o assombravam e de uma forma pertinente. Havia estado envolvido numa polémica de um investidor, uma cumplicidade que lhe rendera milhões de escudos, aos quais não podia usufruir, agora, só, sem a Carolina. Que os projetos que tinham desenhado a dois, se haviam dividido depois de algum tempo de secretismo pela arte da esposa, em referir da sua neoplasia, por ter descoberto que ele próprio tinha uma parceira de trabalho a que a sociedade machista chamava de amante, e ela, Carolina, sabendo que lhe retirariam o peito esquerdo e depois também o direito, se refugiara na casa da irmã, e implorava: Adélia, não contes, por favor.
Assim, a irmã não proferira uma só palavra acerca da sua neoplasia e, com ou sem conhecimento dos amigos e familiares próximos, sem justificações plausíveis, Carolina passara a dormir na casa da irmã, deixando o marido sozinho, na casa de família, as filhas já nas suas vidas, na cidade grande. Somara-se a isso a necessidade de manter aparências da parte dela, para as filhas, não querendo preocupá-las, e quando as sabia prontas a visitar os pais, lá voltava a casa onde só o marido residia, numa ordem aparente. Um dia desses, Carolina arrumava as roupas dele no quarto, depois de Helena, a mais velha, ter saído pela porta, e Carolina ouviu um baque. Contra o móvel da sala de estar. O marido caído, gemia qualquer coisa semelhante a um pedido de perdão. A esposa agarrara o telefone fixo e ligara para o Inem. Em pouco tempo, o José Figueira estava a ser submetido a uma cirurgia, em pouco tempo, não mais que quinze dias, a pensar em voltar a casa e, ainda na sala do hospital, já sem soro, com o sangue algo rejuvenescido e os óculos de tartaruga a serem empurrados enquanto lia o jornal e aguardava Carolina, para a bem-vinda alta, lhe chegara a notícia de que a sua Carolina estava morta. Mais morta que ele naquele momento na sala de estar, a pedir-lhe que o perdoasse pelos erros, pelo rompimento da cumplicidade e lealdade que a mantivera casada. E depois disso, sobrara o ócio da dor, que é a pior, que se mantém colada à derme, conjeturando se ela o havia perdoado ou se teria partido, sem esperar a sua alta, sem o perdão necessário para o acompanhar na idade, nos dias de desafio, numa agonia de dar dó, aquele homem de quase dois metros de altura, esquálido pelo tempo e talvez pela falta de respostas que nunca lhe haviam chegado. A solidão não cabe nas salas, irrompe pelos quartos, deita-se ao nosso lado, na cama, no sofá, não silencia, só grita absurdos e na cabeça dele, havia a esperança de que, ao contar-me, pudesse, de alguma forma, sentir alívio, ou o perdão para se auto-perdoar, e a mim, custou-me imenso dizer, deixar que as palavras se unissem na frase de desfecho que lhe disse, mas precisava de ver diminuída aquela dor e então rompi o silêncio, mexendo na chávena vazia com uma mão e com a outra no pacote de açúcar intacto:
-Tudo estava escrito no tal livro inacessível, sr. Figueira. E repare, a figueira, só é impossível de redimir se não der frutos sãos. Nesse quesito, temos que concordar, o senhor deu frutos, a figueira não é estéril. Escreva sobre isso, se o ajudar, mas não se puna dessa forma, adiando a vida. Porque não uma viagem a solo, cumprindo os planos que tinha com a esposa?
Vi, não por milagre divino, mas por circunstâncias humanas, o sorriso rasgar-se, como se, deveras, tivesse dito eu: estás perdoado, homem. O fantasma da culpa abandonou-o nesse instante, por momentos e pude ver a esperança cobrir-lhe o rosto e desatar num sorriso aberto de tolerância consigo mesmo.
- Sabe, começo a acreditar no que diz desde há muitos anos, se tudo está escrito, quem sabe, indo na viagem que não fizemos, a encontro, a ela ou, se calhar a mim, ao perdão que pareço não ser capaz de parir. Foi muito bom conversar consigo hoje. Não há mesmo coincidências!
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