Não há longe, nem distância, só Ilusões






Ontem, fui ver o meu amante silencioso. 
Precisava de o ouvir rugir, falar, dar conta que ainda vivia, por mais longe e distante que estivesse (a recordar Fernão Capelo Gaivota e o depois de Richard Bach, que não há longe, nem distância, e estávamos em 1979).
Inteiro, bravo, solitário, indomável. E no seu dorso, mil gaivotas aspiravam o ar marítimo e aprimoravam o voo. Nele, no mar tempestivo, descubro a razão da reincarnação. O segredo que não é segredo. Não há segredos. O que mantém oculto o conhecimento é, somente, a impreparação para o conhecermos. Para tudo, há um tempo divino. O segredo todo é esse. E o exercício de querer saber mais. 
O território ordena-se depois dele. Do mar tomar o seu lugar. Como a vida se arruma nas interdependências entre os nossos planos e o que acontece, enquanto os tentamos levar a bom porto, parafraseando John Lennon. Cheguei e ele ali estava, esperando todos os que o amam, voluntarioso e genioso. A língua de areia mantinha-se igual ao que me lembro de há cinco anos atrás. Faltava, somente, o grande mamarracho com a maior esplanada que me lembro, desde sempre. Os passadiços viçosos e bem ordenados conduziam os veraneantes pela linha entre as dunas e a civilização. 
Deixei que os meus pés pisassem a areia fina, aos poucos, aproveitando para sentir e ver os meus dedos se afundarem e voltarem à superfície. Um casal de namorados, sentado num dos muitos bancos dos passadiços alimentava a paixão com o milho próprio do amor, beijando-se efusivamente, gargalhando e sussurrando cumplicidades e, ouvi uma banda sonora tão bonita que acreditei que os dois pudessem ouvi-la diretamente de mim. Todos possuem bandas sonoras por dentro, pessoais e intransmissíveis, distintas das minhas escolhas. Olhei em volta. A praia recebia-me da forma como eu aprendi a amá-la. Com poucos membros da espécie humana. Meia dúzia, se tanto, naquele paraíso pequeno e oculto do tráfego uns metros acima, nas estradas.
Escolhi o meu sítio deserto. Estendi a toalha, sempre de olho no mar, despi a camisola e a saia, dobrando-os e fazendo deles a cabeceira. Organizei as sandálias, pousei a mochila e fui, impetuosa, sentir o fragor da maresia, senti-lo através das narinas e dos olhos. Sou do mar. E ele beijou-me os pés, os tornozelos, soprou-me para o corpo gotículas da sua frescura e, quando dei por mim, procurava beijinhos e sargaço no seu colo. Retornei à toalha, talvez uns vinte minutos depois. Outro casal, menos jovem de idade e mais ousado em liberdades, bramiam um "Setgo" para um cão, castanho e branco, atirando um pau e ele corria, satisfeito e devolvendo o objeto, enquanto ambos, ele e ela faziam exercícios de ginástica e o Setgo se aninhava, aguardando o seu tempo e espaço, enquanto novelos de intimidade, do casal adotante, ia em crescendo, dos gémeos e pés, até às coxas dela, enquanto as mãos dela davam pequenos golpes na barriga do parceiro, ele sorrindo, erguia-se e passava-lhe a mão no rosto, alinhando os cabelos dela, enquanto o vento os desmanchava, novamente. 
O mar cria cumplicidades e transmite alegria aos gestos mais simples. Dei por mim sorrindo aos avanços de ambos, à inteligência instintiva de Setgo e à minha própria distração. A alegria é contagiosa. Um otimista aceita a alegria dos outros e faz dela, sua. Ajeitei-me entre a toalha, ainda de pernas e braços molhados, de nariz pingando e mãos cheias de búzios e conchas, de beijinhos que se me vieram parar no regaço, enquanto entrei dentro da cama do meu amante milenar. 
Estive a ler meia dúzia de páginas da Martha Freud e da correspondência entre ela e "Sigi". A Teolinda Gersão fez-me companhia, também ali. A leitura permite outras versões da realidade, outras versões construídas pelo passar do tempo e pela montagem inerente de conceitos e preconceitos que vamos adotando, visões deste ou daquele personagem, malabarismos que a lente escopista de outro olhar nos alcança. Freud estava num patamar de inverosímeis monstros imortais, mas nunca alcançando clareza, quanto aos fundamentos dos seus inúmeros estudos da psique humana. Havia nele particularidades que se revelavam, agora, neste agora, noutros agora, enquanto durasse a leitura, que sem deitar por terra a sua curiosidade e estudos, os trasvestiam de uma causalidade mais clara, apesar das suas muitas opacidades. A insegurança, o medo, aquele episódio estranho, que se tinha somado a uma personalidade enfraquecida, pelas inseguranças e lesões na autoestima, revelavam peculiaridades que, traduzidas por Teolinda, interpretando, ela mesma, a correspondência, atingiam um novo olhar e frequência, explicando mais claramente o que chegara a ser, para mim, a estranheza complexa da personalidade do professor psiquiatra, sem desmanchá-la, sem adulterá-la. Uma camada fina de pólen ou soro da verdade, como uma cortina transparente e leve, de cornucópias na sua extremidade (mero capricho de autor) desvelavam, deixando a nu a fonte da sua sede, permitindo antever a brecha que, simultaneamente, escondia o verdadeiro eu, e mostrava a exuberância ou prepotência da humanidade. Tal como o mar, quando se tem paciência, que vem de sete em sete ondas, para liberar energias, de sete em sete, para um parto de identidade, de sete em sete, para o retrocesso de uma embarcação, de sete em sete, o recomeço de uma nova era, também ali, naquele livro rosa, despretensioso, mas contendo em si as chaves da abertura para uma nova dimensão, encontraram-me a mim, desprovida de bloqueios ou preconceitos, e pude ver que, tal como Sigi, escondemos debilidades que, aos olhos dos outros nos enfraquece ou possibilita  (acreditamos que nos debilita, isto de ser-se humano, demasiadamente humano), e vamos construindo "castelos de areia" em cima de pseudoverdades que, por ventura, vidas à frente, alguém irá desmontar, como se fosse a sétima onda que virá deitar por terra, o castelo erguido, uma resma de anos atrás. E o tempo nestas operações pode ser tudo ou nada. Que o único que sempre é real na existência é o já e o agora, que funcionam como o mar, movendo-se, sem pausas e nem contemplações, como o pôr-do-sol a contaminar o horizonte, como essas cabeças de farol, como essas antenas da Petrogal, que daqui conto vinte e quatro, até que o nevoeiro que nasce pela distância sobre a fina camada do ângulo cego, imposto pela visão humana, não discerne. 
Dei por mim a pensar em ti, tu que sempre foste o meu "Sigi", que sempre foste o farol altaneiro, e o próprio faroleiro, o das visões abrangentes, a razão de Úrano ser disruptivo, que leriam sobre a nossa identidade, através das cartas que trocamos aquando da tua permanência em Marrocos, sob a capa de quem somos, o sufrágio de não sermos somente eu e tu, mas quiçá, partes ou resquícios da maior e inteira natureza de ser-se livre. Mas é claro que aqui me lembro de outro autor, Daniel Sampaio, de sermos livres numa prisão, e obviamente, a minha alma que aprecia o voo mais do que o alcance da outra margem, prende-se aos detalhes de Pablo Neruda, nesses grandes navios ancorados ao porto mas que nunca chegam a ti, ao Velho e o mar do Hemingway, aos monstros e semideuses de Mota Cardoso, a Richard Bach, desde Fernão Capelo Gaivota, desde Não há longe nem distância, passando pela Ponte para a eternidade, vou às Ilusões, como escolha última desta passadeira de tempo chamada agora e tu "meu Sigi", por mais detalhes e enredos, por mais nomenclaturas que a literatura discorra, haverá sempre em ti, a fórmula correta do mar se expandir pelas "mãos uranianas" e me oferecer uma perspetiva de coito no leito do mar que escolhi como personagem principal, onde digo mar, mas és só tu que me preenche, onde digo maré cheia e me vences pela generosidade e abundância e digo preia mar e há, sempre, nas imediações, uma lua nova ou uma lua cheia com o teu rosto de perfil e o teu sorriso rasgado e, se eu esperar, a tal da paciência, que é o xarope-veneno, vejo-te descer pelas nuvens rasgadas de algodão, depois da avioneta circundar o que imagino ser o porto de Leixões e voltar pululante e descontraída, deixando um rasgo da sua repentina aparência, a separar o céu e o leito deste oceano imenso onde te encontro, de todas as vezes que me quero perder. 

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