Jordi Virallonga
Quando mais do que ser, sucedes
Quando um barco zarpa, tu não vais nele;
algumas vezes leio-os, vejo-os
e esqueço que existem,
apagam-se e não sulcam
oceanos, cabeças nem mistérios
quando mais do que ser
sucedes, e quando acontece, nada,
nenhuma canção, nem lembrança podem
o que o teu peso arrasa,
quando sei que te levo no bolso,
com as chaves, os meus filhos
e o mar onde agora habitas,
que é a única coisa que tenho,
quando os ciclos se confundem
e este olhar absurdo
com que a vida corrige o olhar da minha vida
constata que não faz sentido
que o ir consista em voltar,
então mendigo um corpo e um pouco de memória
para recordar de novo
esse eu que levaste contigo
deixando um ódio precursor de outras derrotas,
um lamentável sul sem norte
uma merda de abandono, uma cara frágil sem remédio
e embora no mais profundo esperes
que essa neurose ansiosa de que padeces
seja tão passageira como tu nesta vida,
o certo é que essa imagem inútil e estrangeira
é a única coisa que tens da tua biografia,
que embora sendo mentira, é a sério.
Experimenta pensar em ti um pouco,
senta-te, tenta o carinho e vive sem a misantropia
de pensar que odiando os outros custa um pouco menos
abandonar um mundo povoado por cretinos.
Em verdade em verdade te digo que não sei como hás-de fazê-lo
mas sei que o resto é só ruído,
e fúria
e é ranger de dentes.
in Quanto sei de mim, Teorema
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