Memória transportada de 2009

 



Horário do fim inadiável



Nos últimos tempos, a anestesia das dores e dos dias que se seguem "ao tem que ser" dos que da lei da morte se libertam (como diz o Roger), mantém-se. Estou a viver na margem de um não-sei-o-quê e nem-pra-quê. Mas a vida não se reclama, aceita-se. Talvez tenha nascido daí, o comodismo e o laisser passez. Assim, vai a vida interna em mim. Quanto à externa, não se compraz das minhas anestesias, nem mesmo quando, logicamente, me enfureço por achar que há um tempo pra tudo, eu que, também, acho desprezível esta dimensão de contagem dos segundos em eternidades, esta necessidade de rasgar as décadas e os séculos pra regularizar auxiliares de memória. No dia 26 de Outubro morreu uma amiga de sempre. E SEMPRE já não se pode dizer, passou a ser insignificante. Um sempre sem a minha eternidade que acompanhe a tomada de conversas em dia, a constatação de que fazemos parte da vida de outros e outros também compartilham de quem somos e contam connosco. Nem antever como crescerá a filha que verá no rosto dos outros o medo de soprar o nome materno, com medo que o castelo de areia vá ruir, de tão frágil. Ouvirá, bem mais tarde, falar nos seus olhos curiosos e enormes, na sua figura esbelta, na sua graciosidade de bailarina, na sua capacidade de sonhar tão ao jeito do melhor dos Peter Pans que conheci. Vi-lhe as primeiras brancas, mas isso não se diz. No domingo anterior a se ter apagado, como uma vela apanhada entre uma corrente de ar de uma porta esquecida aberta, dizia-lhe a minha mãe que tinha madeixas bonitas. As madeixas eram as brancas. Esporádicas e pontuais numa farta e forte cabeleira castanha mel. Não lhe ouvirei ralhetes a propósito das minhas mais recentes asneiras. Nada, nada. Da sua mãe, receberei sempre o mesmo sorriso ou abraço quase chorado, dizendo que sou uma memória viva dela. Muitos natais passarão sem que o rosto se apague, porque ainda hoje a vi, aqui, do outro lado desta janela, junto à churrasqueira, rindo das travessuras dos animais e tentando não mancar, tentando não mexer nos medos disciplinados.


Morreu e morremos também, morreu e continuamos vivos, na espera de um sinal. Há-de conseguir espreitar por detrás do rosto da filha, diante de todos os animais que amava, espelhando-se por ela dentro, sem que ela possa sequer adivinhar que carrega a mãe até nos tiques. Fico a pensar se a morte é assim tão má! Nunca ninguém voltou. E o corpo atrapalha quando a missão que temos é voar. Era o caso.






No fim de semana que se seguiu às cerimónias fúnebres e da cremação (Claúdia está no mar), a filha veio com o pai passar o dia com o Tomás. Constatámos que havia um centro hípico desativado em Penafiel, visitamos as crias do labrador Martim, almoçamos ao ar livre, andaram a pintar a manta os miúdos e os adultos ficaram-se a trocar pensamentos, palavras e atos da "ida". Entretanto, encontrei estes animais pelo caminho, já entrou mais uma cria de labrador em minha casa que dá pelo nome de Lolita. Preta e com dois meses. E não, não é filha do Martim. Essas crias só terei acesso daqui a dois meses, pois estão no desmame.


Vagueio pelo presente em tons de incerteza, com esta dor de lado que me persegue há meses. Disse a um amigo de sempre, a quem abracei de saudades, que este ano era o pior de sempre. Sinto que mais virá. E que nunca estamos preparados pra coisa nenhuma. Nunca será a hora certa de receber choques, de sofrer faltas, de perder. Perdi uma grande amiga. Ganhei um novo medo, o medo de desacreditar e o seu reverso. Porque ambos nos tiram o tapete e nos atiram para o chão. Como se fôssemos cacos de uma peça irrepetível e impossível do capricho d'Ele.






E Mia Couto sussurra este verso:




Horário do Fim



morre-se nada


quando chega a vez


é só um solavanco


na estrada por onde já não vamos




morre-se tudo


quando não é o justo momento


e não é nunca


esse momento





in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


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