Valorizar o agora





 Parece que quando nascemos, já nascemos com pressa, a correr. A nossa consciência ainda não está lá, devido ao impacto do nascimento, mas a lufa lufa de um nascimento é stressante pra todos os intervenientes. No fim, as coisas passam-se mais devagar, como se pudéssemos adiar a partida do outro e, simultaneamente, mantermos a morte mais distante de nós. Que isto de morrer é tudo menos divertido! Crescemos e na medida do nosso desenvolvimento, vamos valorizando, de acordo com a faixa etária que podemos padronizar por atitudes semelhantes, formas de respirar quase iguais, gostos e hobbies comuns. Da infância dos legos e dos puzzles, da sopa obrigatória e das sestas pós almoço, das bonecas e das descobertas primeiras ao inicio da segunda idade, em que todos sequiosos destruímos bonecos, rádios e aparelhos diversos pra ver de que são feitos e montar tudo outra vez, dos desafios de atravessar o nosso jardim pra rua do nosso amigo, sem o não dos adultos, vestimos e despimos roupas dos pais, calçamos os tacões e desejamos chegar rápido aos 18, a idade de emancipação, onde podemos dizer aos progenitores: Lá prá meia noite volto, não esperem por mim. Aos 30 cheios de projetos de casa nova e mudança de carro, dos filhos que se sucedem ou não, dos ppr's e dos cultivos, dos filmes e dos bons livros, da serenidade e de saborear um momento com a qualidade que merecemos dele. Enfim, a vida correu porque o espelho desmonta qualquer dúvida que pudéssemos ter ainda, e, a gravidade é como o algodão - não engana. 

Com saúde ou sem ela, todos ansiamos imortalidade, porque afinal, iríamos ser diferentes de milhões de semelhantes e de anos, de não-sei-quantas civilizações anteriores, de expectativas humanas?


Quando a doença nos "apanha", seja crónica ou temporária, definitiva e terminal ou sem critérios pra definição ou diagnóstico, damos conta que a vida se estreita num canal, a velocidade diminui e chega a parar, os alarmes da consciência de perda disparam aflitivos e nós temos medo. Não será tanto o medo de morrer, mas o receio maior do desconhecido, do depois, além, ou seja, o que vier. Tendemos, nesta altura, a apreciar tudo de uma forma mais completa, mais inteira, a essa maturidade da idade ou da consciência, a maturidade das experiências ou o limite imposto pela falta da saúde, a essa maturidade ficamos a dever olhar as coisas com olhos de ver, com a sensibilidade de quem vê pela primeira vez alguma coisa e, simultaneamente, com a qualidade de quem possa estar a fazê-lo pela última vez. As perspetivas brotam aos pares, a tolerância cresce de acordo, e, os outros passam a ser tidos como pequenas extensões ou núcleos ao qual pertencemos e aprendemos a amar. Chegamos a olhar a humanidade e enxergar os defeitos e ainda assim, sentir ternura por ela. E valorizamos o pôr do sol ou o seu nascimento diário, as cores e a fertilidade da natureza, as pedras e os rios, os animais e as crianças dentro dos seus próprios mundos e tudo faz sentido, encaixado no nosso mundo. Temos noção do lugar que ainda é nosso e começamos a ocupá-lo com prazer, a saber partilhar e a prezar todas as relações desde as mais superficiais a todas as outras que nos envolvem e nos dimensionam à nossa realidade. Do "já" que é a vida a acontecer no instante. E o tempo, esse peso pesado que é o século ou o dia de 24 horas, passa a ser apenas um contador de momentos gratificantes que dele soubemos habilidosamente espremer. E aí, qualquer ambição desmedida, qualquer megalomania engordada, qualquer futilidade cultivada mirra, seca e morre, como se nunca tivesse existido.


Todos conhecemos casos de vida, próximos ou menos próximos, mediáticos ou vividos na ignorância ou solidão total, de seres que desaparecem, que nos tocaram, que nos melhoraram como seres humanos, que nos dignificaram, que nos mostraram em algum momento de que somos realmente feitos diante do limite imposto pela nossa impotência biológica. E somos super-homens de barro, esfinges de um astro apagado. Ainda assim, tochas vivas de memórias que sempre farão parte da história feita de nós.


Conclusões: Barro e pó. Viver vai valer sempre a pena, ainda que só mais um segundo. E nesse segundo atingir o nirvana da vida, provocar nirvanas na vida alheia. Porque não partir quando é chegada a hora? Quem recusa partir quando viveu de acordo com o seu ritmo? Por que raio valorizamos a qualidade da nossa existência apenas quando amadurecemos ou quando nos espetam um ultimatum? E depois, morrer pode ser uma segunda oportunidade, um interregno entre o antes e o depois, entre uma coisa e outra. E se não somos capazes de antecipar, prever ou adivinhar o depois, o que nos importa passa a ser agora. Pra quê complicar? Estão dispensados do meu funeral, já da minha vida não vos dispenso!



Bom fim de semana a todos! Shalom! 

(eu vou aproveitar para ler, comer, dormir, sonhar)

Como dizia o António Feio, aproveitem a vida! AGORA!

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