Bússola II
O único ponto cardeal és tu.
Tremo de expetativas quando olho este velho retrato. Parece-me que não te posso esquecer. E teimo em voltar os olhos, perseguindo o teu olhar que me sorri. Não és tu, apenas a lembrança de quem foste. E oiço-te no meu pensamento, dizendo algo como, as meninas não se querem tristes e por isso vou buscar-te o palhaço, mas é a minha imaginação a dar corda às imagens gastas, da sépia que não pode mostrar a cor dos teus cabelos, do meu vestido rodado, da tua calça onde a minha mão repousa. Nem a cor da tua esperança que impedia as dores do mundo, todas. Perto de ti, não havia crianças com medo, animais com fome, ao teu redor só a chaminé do teu cigarro desenhava abstratos a que eu dava forma e, tu vias tristeza e eu adivinhava outros mundos inventados na névoa do teu vício. A cor da poltrona gasta era verde, mas só eu e tu o sabíamos e quem nos tirou o retrato. A curva do tapete mostrava ainda o mosaico onde crescera. A cortina era rendada. E recolhida para deixar entrar a luz do dia. E a quietude chegava ao fim do jantar. O meu descanso no teu abraço e o teu cansaço. O meu amor por ti e a tua ausência permanente. Como eu, depois de ti, o cavalo de pano, o palhaço e a boneca de trapos, a um canto. Até o Ritz deixou de ser comercializado. Creio que por tua causa.
Os teus livros ficavam abertos, quando me sentavas na tua perna e me contavas histórias, pensando que eu poderia pertencer à turma das meninas tristes que precisavam de palhaços para dar risadas. Nunca me quiseste ver triste e eu nunca fui triste. Até partires.
As cassetes da Grândola Vila Morena, as bobines e a máquina estão sem cor. Tudo em redor sem cor. A vida sem cor. Os serões de boa disposição, podia ouvi-los, repeti-los de olhos cerrados, o lençol na parede, a projeção e tu orientavas as bobines e passavas uma vez mais, os momentos na praia, em que nenhum de nós era triste. Éramos crianças eternas. E tu um herói imortal. Alto. Eras o mais alto dos homens, dos pais, dos heróis e também o mais bonito. Os teus olhos humedeciam-se e brilhavam escuros e pequenos como lagos à noite e, logo a seguir, brincavas, todos riam, adultos e crianças, achando que te teriam para sempre. Acreditei sempre nos teus livros mas nem eles tinham desfechos felizes. E procurei-te nessa biblioteca vermelha, Tolstoi foi o responsável pela tua partida e estudei cada parágrafo, pensando que podia salvar-te a ele. Tu ficaste-me mais do que os anjos que me acompanharam, tu ficaste quando te foste. Ele também. Está na estante. Há muito não pego nele. Pesado e culpado! Na página 232 "Agora, olhe só no que deu!" E começou a contar: um, dois, três, quatro, imaginando que, se a bomba explodisse num número par, ele ficaria vivo, mas se fosse ímpar, ele ia morrer. "Está tudo acabado! Estou morto!", pensou, quando a bomba explodiu (ele não lembrava mais se foi num número par ou ímpar), e sentiu um impacto e uma dor atroz na cabeça. "Senhor, perdoai meus pecados!" Mas quem não lhe perdoava era eu.
Nada me garante que não foi este impacto que te levou, que te arrancou de mim. E ouvi as histórias mais tarde que a tua ansiedade, quando a mãe descobrisse que tinhas comprado uma boîte em parceria com o Germano, essa ansiedade é que te tinha acabado. O Tolstoi parece-me mais culpado. A tua ternura ainda verte na minha direção. Gastei o retrato, mas a ternura é líquida e mantêm-se na reserva, quando te revisito. Ainda te subo para as costas e me seguras nos braços, devolves-me a bisnaga dragão azul e branca, do fcp para ir aos jogos e jogar água nos adeptos dos outros clubes rivais. E sorris porque me achas piada, insolente, indo além das instruções que me davas. E quando fosse golo, alegria, enchias-te de alegria genuína de criança, como se fosses ainda adolescente e fosses tu a marcá-lo na baliza adversária. E no fim, cumprimentavas os amigos rivais, perdesse ou ganhasse, e guardavas a minha bisnaga vazia no bolso e lá íamos à praça Velasquez comprar algodão doce. A praça perdeu as cores, mesmo nos dias de jogo. Até no Verão. Tu continuas a cores, as tuas roupas continuam coloridas, os teus cabelos, as tuas palavras e o teu sorriso, paizinho, a despejar ternura e colo todos os dias em que te olho.
Se me vês perdida, porque não me levas tu? Tanto te pedi, nestes anos, vem buscar-me e tu não me ouves, não te vejo, só quando olho os retratos gastos. Dá-me um sinal, pedi-te e ainda te peço nestes anos todos e o único sinal que tenho é de que a dor que se me alojou na tua partida não tem fim. Grito por ti: - Paizinho! Eu vou buscar-te um Ritz, pede-me, pede-me! e eu volto a ser criança e a saltar-te para os braços que amparam o meu mundo, devolvo-te o Ritz, enquanto me ajudas a desembrulhar os bombons e eu lambuzo-te todo e acredito sempre que só me morreste em pesadelo. Porque não quero conhecer essa maldita que te roubou!
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