Este licor é pra ti, Neptuno

 



Voltei a abrir a janela do cárcere. Agrada-me a noite, as sombras, as estrelas e decifrar os ruídos do que se move dentro da escuridão. Os meus olhos fogem constantemente para o céu. De tarde, o meu pai fugiu, por entre as nuvens que se carregaram de degradés de cinza. Por fim, o cinza era escuro. E dizem que vai chover. Voltei a abrir o cárcere imensas vezes, e vi, efetivamente, os primeiros pingos tocarem as folhas do carvalho e da cerejeira, formando um tapete almofadado. A Kirie e o Rocky ouviram o ruído das portadas e vieram cumprimentar-me. Voltei a entrar e inventar novas atividades para que o ócio e tédio não tivessem remetente estancado. E dei por mim a ler online algumas coisas do Cam. Tenho saudades dele. Dele todo, de falar com ele, de ouvir as suas palermices, de subir os degraus velhos da tia Laura e espreitar as estantes completamente abarrotadas de filmes piratas. Dos livros e compêndios de traduções. Técnicas, sobretudo. Dos manuais que em tempos foram da Salvador Caetano. Até do olhar circunspecto dele, quando entrávamos pela cozinha de mármore frio, despida de luxos, e nos sentávamos ao calhas pela grande mesa, sempre cheia de apetrechos de novas receitas de culinária. A tia Laura era gulosa. Mas dizia que o Cam é que era. Coitado, já se finou há muito, mas suspeito que nunca saberei há quanto. Nunca mais lá voltei. A última vez que estive com ele já passaram mais de seis anos, talvez sete. Ali junto à serra do Pilar. Tinha pressentido que alguma coisa não estava nos conformes, pela voz ao telefone. Marchei lá, passei na traseira dos Ctt da Batalha, dos produtos da Madeira, virei à esquerda, para aceder à ponte que me levaria ao Pilar. Ali resvés ao espaço T e à própria rua da Batalha e do Sol. Passei naquela instituição de órfãos, perto de onde tinham assassinado o Gisberto. Chega-se rápido a Gaia por ali. Na rua dele, havia sempre estacionamento, mais abaixo ou mais acima. Nesse dia não. Tive que dar algumas voltas ao quarteirão e cheguei a ter que descer à avenida central de Gaia, passando à porta do quartel, para conseguir, quinze ou vinte minutos mais tarde, encontrar a porra do estacionamento perto da morada do meu primo Rui. Não tenho lá grandes memórias de Gaia. Exceto pelo Cam e pela tia Carmen. 

Nesse dia, vi-o soturno, a poupar nas chalaças e nos elogios, a raiar o raio me parta se não está a gozar com a minha cara. Eu e o Cam eramos muito amigos. Amigos do tipo irmãos gémeos. Ele mais velho que eu quatrocentos anos. De idade cronológica. E bastante mais novo que eu de espírito. Era um geminiano como manda o figurino. Curioso, inteligente, fraterno, sempre cheio de ideias para mudar o mundo para melhor, um enorme idealista romântico. Eramos gémeos em muitos quesitos. Perguntei-lhe se a tia Laura estava bem. Respondeu-me evasivamente e com graçolas que ela estava melhor que ele. O que era duvidoso, pois a tia Laura tinha noventa e quatro anos e apesar de não lhe conhecer mais do que uma ou duas constipações sérias, tinha problemas cardíacos e o raio de uma espondilose. Sempre a vira bonacheirona, bem-disposta e inventiva. Sempre a cozinhar, a tratar do quintal. - É sério, Zira, esta gaja vai durar duzentos anos! Vais-me ver marchar, mas ela vai continuar pedra e cal. 

Não a vi, nesse dia, estava no hospital para exames médicos desde manhã cedo e só depois que entramos no café da esquina, me disse que ficara internada. O Mário, assim se chamava o dono do tasco lá nos trouxe o café que era miserável. Odiava aquele café fraco, misturado, mas era o ritual do café que fazia com que o Mário estivesse sempre à pinha. E as diárias, claro. Nesse dia, o Cam mostrou-se mais vulnerável e o copo meio cheio de dias tristes afinal, estava um copo meio vazio, tal como o café ordinário daquela espelunca. 

-Oh maraduxa, queres mesmo saber, não é? Depois não te queixes! Ela está no hospital e vai-se com o carago! Mas o melhor Zira, é que o Álvaro, telefono-lhe, mas depois não tenho coragem de dizer-lhe!

Comecei a ficar deveras preocupada e, muito embora estivesse habituadíssima àquelas tiradas rocambolescas, jurei a mim mesma não me queixar, mas estava tão longe de chegar à verdade que, uma vez lá chegada, iria dar a jura pelo avesso e morder os meus lábios até fazer sangue. Essa tarde rendeu-me duas noites de choro compulsivo e umas semanas de intranquilidade e remorsos. Saímos do Mário, quase atropelados pela malta que entrava e saía de almoçar tardiamente, de cafés e de brandies, de frio e de magalas. Dobramos a esquina, mas ele não quis ir para casa e continuamos a andar pelo passeio, já me tinha arrependido de ter calçado as texanas de salto, com os tacões a anunciar a nossa andança pelo passeio afora até à rotunda do quartel. 

- Vais dizer-me ou vou ter que te bater, Cam? Não é só a tia Laura, pois não?

E ele lá me disse. Ainda o estou a ver, com o fato de treino da Nike, em dois tons de azul, ele que não gostava de fatos de treino, de garruço na cabeça, os óculos embaciados e vi um Camilo menino, um Camilo que nunca tinha visto, perdido, a chamar os pais que não ouvem o seu chamado. Nunca o tinha visto a chorar. Bêbado sim, a chorar e a rir ao mesmo tempo, sóbrio e fodido também, irritado, zangado com o mundo, com os homens ou com este ou aquele gajo, com esta ou aquela tradução, com esta ou aquela gaja, com este ou aquele fait divers mas não a chorar de dor. Naquela tarde, junto à rotunda, não havia vivalma, nada. Apenas duas pessoas olhando uma para a outra, ambas sem saberem o que fazer à dor, se lhe dar colo ou se a deixar chorar até que se finasse. Não me permitiu que o abraçasse. Ou despencaria como uma criança. Segurei-o pelas mãos, mas fiquei muda, incapaz de dizer fosse o que fosse, que me faltaria coragem para os depois e que fugiria covardemente, como fiz um mês antes da partida da avó Bina, dizer-lhe que me pesava o coração saber que um dia marcado por saturno, a que nenhum de nós tinha acesso, aquele irmão não mais utilizaria as garrafas com os apetrechos americanos dentro da calça do fato de treino, que não mais ouviria as suas graçolas e nem a sua inteligência viva e a sua comunicação impar. 

O Álvaro era o filho dele. Que numa porrada de anos, nunca tinha visto. E que sabia menos do pai e da tia Laura que eu. A tia Laura estava a finar-se com a idade e as complicações na aorta, tudo próprio da idade avançada, disse-me, claro, eu sabia da sua luta para não deixar o sobrinho sozinho, mas o pior, disse-me, era o seu próprio cancro, que tinha progredido a ponto de ter que usar fato de treino para lhe facilitar as operações e agora, sozinho. O que o faria lutar para sobreviver? Encomendara vários instrumentos, injetáveis, aplicativos, importara dos States, caixas daquelas cenas que tornavam as operações de algaliar muito mais amistosas e tal para nada, para a gaja morrer assim, do nada, que vai fazer anos a 12 de julho daqui a meio ano, não podia, ao menos, esperar o próprio aniversário, que pressa era aquela de morrer no inverno, carago? E tu que és uma "inginheira de mônas", não me queres dizer que raio se lhe atravessou, que tristeza foi esta de desistir de mim agora? Deixava-me morrer primeiro a mim, Zira, primeiro eu, carago!

Lembrei-me de anos antes, muitas vezes, ele me ter acompanhado a Espanha, a tomar café em todo o lado, oh maraduxa, vamos tomar um café a nuestros hermanos? Às vezes no meu bote, outras vezes no dele. Quando o Rui Varejão ainda era vivo e com saúde, e a tia Carmen! Ou irmos ouvir o Vareja e o Sarbib ao bar do hotel, ou de entrarmos em brincadeiras e eu de casamenteira, tentar que ele e a tia Carmen  se dessem melhor. Ou das operações Camundongo que deram origem às consultas de psiquiatria, no stress pós-traumático da guerra, para o problema labirintico da surdez e das vertigens, ou das imensas vezes que quase desistiu de trabalhar para a Salvador Caetano, como tradutor. Mas ouvi-o muitas vezes dizer, -Zira, eu vou enchendo o buraco que fiz de aérios, mas um gajo se não se põe a toques, se desmoraliza ou se tem um daqueles momentos de "é agora ou nunca" que vou viver prás montanhas, sabes como é, onde tiras e não pões, um dia acaba-se e tás a ver, um gajo com a minha idade, ia fazer o quê? Dar o cú é que não! 

E dei por mim a ir à sala e servir-me de uma dose generosa de licor de café com dez cubos de gelo dentro e voltar à janela a perscrutar o silêncio, creio que pedindo sinais a todos esses meus amigos que se marcharam para o outro nível aos quais não tenho acesso por ainda ter este corpo. E se tivesse uma ervazinha, uma marijuana, ah pois, não estaria aqui a escrever, mas a viajar com neptuno que, ainda assim, é o meu maior companheiro de águas profundas. O licor acabou. Ou seja, a água de licor de café. O que é bom sempre se finda. 

Neptuno está ativo e, de alguma maneira, insatisfeito. Não lhe interessamos muito enquanto indivíduos. É o cúmulo que o motiva. A minha mãe continua completamente absorvida pela televisão e os homens ainda não inventaram o aparelho que me faz falta. Vou ver se arranjo maneira de desenhar esse dito cujo durante o sonho. Amanhã vai chover. E depois também. A salamandra continua a debitar paletes de pellets e os animais dormem. Se não me engano, já entramos Janeiro, e se não me engano outra vez, prá semana, chovem canivetes. Ou pedras. 

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