Contrariedades & Sincronicidades
Virinha espreguiçou-se na cadeira dura e plástica. Chegamos à chamada terceira idade e parece que carregamos as décadas em cima das costas, num acumular de dilemas e, no bolso, um punhado de estratagemas para nos empurrar para a frente, para o raio de qualquer cadeira que nos sustenha a coluna. Li que estas cadeiras eram feitas de material reciclável e borras de café. Sempre sorria quando me dava conta que nós, humanos, criávamos e recriávamos como deuses do olimpo, a realidade. Ainda que grotesca ou magnifica. Sobretudo, quando as parangonas hostis da destruição do meio-ambiente nos alarmavam, chocando com o nosso modo vivendis, atalhado em recursos fáceis e, depois, no susto, o surto entre a loucura e a criatividade, nos conduziam e nos dispunham soluções. Que estas só surgem quando, ao invés do foco no problema, colocamo-lo na solução.
O encontro tinha sido meramente casual, se a casualidade não ditasse, a par das mesmas, sincronicidades. Eu aguardava um agente imobiliário. A fome era um estômago quase vazio, alimentado de partes de sintéticos, como café, pão com manteiga e água em pequenos goles. O prato do dia era arroz de ervilhas com marmota. Não me cabia picanha e nem costeletas. Pedi uma água. Fresca, 75 cl.
Elvira era natural de Barcelos, viúva há quatorze anos e com uma filha que tinha quase a minha idade. Já tinha um neto, o Pedro. As ideias preconcebidas levam-nos aos souvenirs, adornos típicos, ex libris, especificamente, neste caso, a Barcelos e, por conseguinte, também a terras imperiais, em Inglaterra, onde conheci a cadeia de franchising do galo de Barcelos, para ser ainda mais específica, o Nando's. Sorri, com o pensamento a levar-me imediatamente lá, tendo sido o primeiro espaço que conheci que só cobrava os pratinhos, mas não as bebidas que os acompanhavam. Estávamos no ano da graça de dois mil e dezasseis. Em Aldershot.
Lembro-me de ter pensado naquele sítio ordeiro, com decoração algo exótica, e de ter imaginado este restaurante em Portugal, as pessoas a assaltarem as bebidas, quase sem comer, apenas como forma de satisfazerem a gula através do oportunismo das bebidas. Lá ao contrário, tudo funcionava disciplinadamente, com civismo. Claro que entre os mais conservadores, pairou sempre a sombra do imperialismo britânico de superioridade sobre qualquer outro povo no planeta. Assim foi, resumidamente, a minha experiência no interior inglês. Mas não com a juventude, a massa destas novas gerações que prometia erradicar preconceitos e no que se prendia à miscigenação, que era a forma mais livre e concreta de, mais do que existir, viver em plenitude. A liberdade era mais que um chavão, era um atributo concreto e abstrato, não só possível, mas implicitamente obrigatório, para alcançarmos novos upgrades civilizacionais. Olhei a Virinha, ainda a pensar que este processo de vida, a que chamo jogo e que é uma experiência, enriquecedora, tem de possuir autenticidade e vontade da parte do ser vivente, mesmo que para isso, seja necessário ativar lutas constantes e fazer frente a conservadorismos bacocos e pouco liberais.
Entre alguma gesticulação, ouvi-a contar-me a história da sua vida. Senti-me um pouco como Sylvia Plath. Na apropriação da matéria-prima, sem o intuito do colecionável, porém, ainda assim, aberta, declarada em mim, a sombra que me mantinha refém dessa forma de estudo humano que sempre fizera parte das minhas sombras e luz. A conotação correta para essa forma de prazer que obtinha sob a vida dos outros não se chamava voyerismo, na medida em que o prazer que obtinha não era de cariz sexual, mas de saciação de um entendimento de traumas e maleitas que carregamos vida afora, como manchas guardadas, caixas de pandora, muitas das vezes, pouco libertadoras, quando não sabemos o que fazer com todo esse material. A humana em mim não se via diminuída no aspeto de empatia. Era outro item do jogo com que eu viera munida. Jamais via tal qualidade ausente, por mais crítica, analítica, por mais tendenciosa me fosse o personagem igual a mim, no que de mais semelhantes somos, enquanto instrumentos do jogo divino.
Os cabelos pelos ombros, um pouco baços, que um dia foram de "russa de má pelo" como ela própria dissera, de tão loira era, alguns cabelos brancos deambulando por aqui e por ali. Cuidada, levemente maquiada, vestindo uma calça larga e confortável e uma tshirt branca, onde se podia ler em letras parangonais vermelhas: I love my cats! Sentou-se na mesa, ocupada por um cavalheiro, seu conhecido, pedindo licença para tal, pois era a cadeira da esplanada com sombra, todas as outras eram inundadas por um sol impiedoso das treze horas, não obstante os guarda-sóis. Perguntei-lhe se aquela zona era calma, vi-a sorver o café em pequenos goles, e a deixar a cinza do cigarro, ora na mesa acidentalmente, ora no cinzeiro partilhado com o senhor que lá estava antes da sua chegada, cutucando o telemóvel e sem ver nem ouvir nada mais à sua volta, completamente centrado naquele aparelho. Virinha respondeu-me, de cima dos seus setenta e seis anos. - Moro aqui desde os meus vinte e oito anos, altura em que me casei com o Rudy. O Rudolfo é o meu falecido. Ele não gostava do seu nome, ou por outra, gostava tanto como qualquer pessoa com um nome comprido, como o do seu próprio irmão gémeo, Timóteo. Que nunca lhe abreviaram o nome. Para simplificar as coisas, desde a juventude que todos lhe chamavam Rudy e foi por esse diminutivo que o conheci. Sempre foi um prazer viver aqui nesta cidade. Até aos meus vinte e três anos, vivi em Barcelos, depois, estive na Anadia, quase seis anos, até me casar. Já casei nesta cidade. Esta cidade já foi um torvelinho, porque parece-me que tudo é por fases, se é que me entende.
Eu entendia bem o que queria dizer-me Virinha. As flutuações sociais e económicas que incomodavam, sobretudo, a maioria. Por exemplo, descobre-se uma corrupção hoje e é um mais do mesmo, dá-se uma normalização da coisa, como se fosse natural, cada dia mais, cair no avesso da falta de ética e de moral. Isso agita as mentes de alguns e a cidade, eventualmente, pode sofrer, eventualmente, virá a fatura. Mas não tanto como a subida dos combustíveis, ou como a queda de um banco onde o povo foi roubado. Ou uma pandemia que isola social, política, geográfica e economicamente a todos.
Olhei-a e pareceu-me pensativa. Com os seus óculos redondos, a sua pele com algumas manchas próprias da idade, as unhas arranjadas, as pulseiras a adornarem-lhe os pulsos e dois anéis, no dedo anelar, da viuvez algo distante, mas sempre presente. Em tom de adivinhação, ouvi-a dizer, soando a constatação e, simultaneamente, a questão: - A senhora não é daqui. Procura algo em especial!
Disse-lhe no tom mais casual que consegui arranjar que não. Não era dali. Na verdade, não conhecia a zona e andava à procura de um imóvel, para onde eu e a minha mãe pudéssemos nos mudar e começar do zero. Nova etapa de vida. Novo ciclo. Um imóvel pronto, mobilado, para arrendar e descansar da azáfama do passado e da ansiedade do futuro que se me apontava ao peito, no externo, como uma arma de calibre vinte e dois. Ela olhou para mim e deve ter-se questionado de muitas outras coisas, eu li-lhe nos olhos a curiosidade e, de alguma forma, a saudade da sua própria mãe.
-Sabe Virinha, a minha mãe tem oitenta e um anos, completados há dias, mas pouca saúde. Uma mulher racional, analítica, uma personalidade amistosa e curiosa, sempre com sede de conhecimento. Toda a sua vida a lidar com lutos precoces de orfandade total, cheia de irmãos que não a queriam como responsabilidade, como mais uma boca para comer, quando muito, usaram-na como mais dois braços para trabalhar e poupar os seus próprios filhos da jorna diária.
- Uma vida difícil a da sua mãe! - suspirou - eu tive mais sorte, cresci com pai e mãe até aos meus onze anos. Foi nessa altura que levei a minha primeira tareia da vida. A minha tia-avó tinha falecido, mas como não eramos muito chegadas, o evento só afetou verdadeiramente a minha mãe, que a tinha como uma tia querida da sua infância. O meu pai não gostava de cemitérios, mas a mãe tinha-lhe pedido para ir ter connosco na entrada da igreja, para nos ir buscar. Eu e os meus dois irmãos, a Cândida e o Artur estávamos distraídos, no exterior da igreja, junto aos canteiros de flores, a ver uma fileira de formigas a transportar alimentos nas costas, no trabalho árduo que, na altura para nós, era exercício físico e muita adrenalina. O Artur mirava a entrada da igreja, contando, talvez, as poucas pessoas que entravam com coroas de flores. Mas eu e a Cândida não. Contávamos o exército de formigas entre as gerberas e as dálias. Nisto, oiço gritos desamparados e acreditei que os nossos parentes choravam a tia-avó no seu caixão. O tio Vilaça que era irmão da minha mãe e a tia Alice, juntamente com a Clarice que era a única prima da minha idade amparavam a minha mãe e eu corri para os seus braços e ela, desesperada, cobria, com as mãos todo o rosto e eu dizia-lhe: - Mãezinha, Deus vai com ela, não chores, mãezinha.
Foi quando o tio Vilaça se sentou no muro, junto ao canteiro connosco, e pediu-nos atenção. Os olhos lacrimejados, de onde saltavam, sem que ele pudesse impedir, lágrimas gordas e dizia: - meus sobrinhos, tendes de ser fortes. Dei por mim, com os olhos à procura de entendimento do mundo dos adultos, que a doença, a falência e a morte eram temas abstratos, com a nossa pouca idade e parca experiência, feios e tristes, depois de amadurecermos com os percursos de vida. Esse não era, de todo, o nosso caso. E com a ponta dos meus dedos, passei por cima do trajeto daqueles seres ínfimos que carregavam o mundo às costas, aguardando que o resultado do enigma acontecesse. Chegou um táxi. Vi a tia Alice entrar com a mãe e a Delfina, o carro sair apressado e o meu coração aos saltos.
-Para onde está a ir a mãe sem nós, tio? - perguntei, para entender tamanho sofrimento que nunca tinha visto no rosto da mãe, contaminá-la por inteiro, a ponto de se esquecer de nós. O tio explicou-nos que o meu pai tinha tido um acidente grave, que tinha ido para o hospital, para Viana e que tínhamos que aguardar para saber notícias.
-Grave, como, tio? perguntou-lhe o meu irmão Artur, na altura já com dezasseis anos, o mais velho dos três. - Grave, mas não sabemos mais nada. Teremos que aguardar saber mais... - Ouvi-o murmurar um valha-nos deus e erguer-se, dizendo-nos para aguardarmos por ali, que a missa já tinha iniciado e daqui a pouco iríamos embora com ele e Clarice. Artur foi atrás do tio e ficamos as três, eu e a minha irmã junto com a nossa prima que frequentava os seus estudos em Viana, vivendo em Darque, bem longe de nós, por o tio Vil estar destacado na capitania do porto de Viana.
Enquanto a Virinha conversava e fumava, bebericando o copo de água e o café, eu comia o arroz de ervilhas com as marmotas, devolvendo-lhe um olhar, volta e meia, para que esta soubesse que acompanhava o que me confessava. Deduzi pela "tareia" da vida dos onze anos que perdera o seu pai, nessa altura, tão jovem. Uma filha sem pai é como um jardim sem flores, mas isso não disse, guardei para mim, que era a minha dor a ser mastigada e diluída por outros, iguais a mim. Elvira pediu-me desculpa por não estar a deixar-me almoçar em paz, mas sentia um impulso súbito por desbordar as suas dores e, talvez, sentisse falta de um ouvido imparcial que não o da sua filha ou do seu neto. Tenho para mim que os desconhecidos são personas colocadas pelo alto, a fim de nos aliviarem a alma. Creio que muitos de nós, numa altura de dor, pressente e pensa isto mesmo. Mas há quem entre nas igrejas vazias, que dobre os joelhos, que erga as mãos em prece, que chore só, que olhe o alto, resmungado pragas e preces, que fungue horas seguidas, que se entristeça ao ver o mar ou o rio, ao ver pais e filhos, casais de namorados, que não entenda como o mundo se atreve a continuar o seu curso, ignorando o sal das lágrimas dos anónimos em sofrimento, dos que vivem lutos inesperados. Não seremos todos? Não caberá a todos?
Depois de lhe ter dito que faltavam vinte minutos para a hora agendada com o agente imobiliário, sintetizou a sua história de vida, dando-me conta que perdera o pai e com ele a alegria que lhe era inerente, que ao Artur o fez crescer mais rápido e, talvez até por isso, ter partido antes do tempo, com quarenta e dois anos, ele e a sua esposa, com um dos filhos, quando regressavam de umas férias a Benidorm, que a Cândida se transformara numa mulher isolada e esquiva, depois do divórcio, fugira para a Lousã e ali se mantinha ainda, de poucas falas e poucos amigos e ela, a única que tivera marido até aos sessenta e dois, que lhe dera uma filha amorosa e dedicada e um neto, o Pedro. Que perdera a mãe, logo a seguir ao Rudy, que isto de perder, dizem, nunca há duas sem três, morrera a cadela velhinha, Estrela, havia seis meses e que o senhorio era excelente, que quando o Rudy morrera, mantivera os setenta euros de renda e só há cerca de um ano lhe havia aumentado a mesma para cem euros, por ter de fazer obras no edifício, mas que mantinha um grande apartamento de dois quartos, ensolarado e de duas frentes naquela mesma zona, onde tinha vivido e passeado com o Rudy, que agora o fazia com o neto, quando este aparecia para lá passar o fim de semana, quando os seus estados de asma e bronquiolite agravavam.
Perguntei-lhe se já tinha tentado deixado de fumar, porque qualquer bronquiolite ou asma se via agravada com hábitos tabágicos. Meneou a cabeça, dizendo-me que era hábito de boca apenas, do tipo social, que só fumava quando saía de casa, porque em casa nem se lembrava. Que tinha tido um episódio grave de asma e teve de recorrer aos broncodilatadores graças ao biscateiro que lhe tinha ido arranjar um cano na cozinha e usara um produto intoxicante que largou fumo e cheiro e que saía de casa mais vezes, só para esquecer o cheiro que ainda sentia de cada vez que cozinhava ou estava mais tempo na cozinha. Que aquilo até devia ser psicológico. Que se andava a lembrar muito de Rudy, aproximando-se as datas que tinham comemorado uma vida inteira. Desejou-me sorte e eu a ela. Pedi a esse Deus invisível e sempre presente que a mantivesse com aquele sorriso e boa disposição, porque a minha mãe era semelhante a ela, na sua vontade de estar bem e na curiosidade natural. Falou-me de extraterrestres, de ideologias e da fé que tinha nesse Deus invisível que não era católico, nem evangélico, que era o deus do amor e da tolerância e que vinham sendo horas, mas só deus determinaria de ir abraçar o Rudy que lhe sentia o cheiro todos os dias, a presença e a inesgotável paciência de esperar por ela e de a levar a passear, contando-lhe os nomes das flores, dos pássaros e estórias que ele ainda lembrava da sua infância, junto com o Timóteo, em Vila Real de Santo António.
Já tinha pagado a conta, deixado uma moeda de cinquenta cêntimos para o jovem que me servira e me tinha erguido para me despedir da Virinha, eis quando vejo uma figura ilustre que havia conhecido no ano de mil novecentos e noventa e seis. O mundo era um bairro, onde volta e meia, meia-volta, cruzávamos portos e esquinas, vielas e alto mar, mas os personagens davam sempre à costa, ainda manchados de passado ou de um prometido futuro.
Dirigi-me para a rua onde tinha estacionado o carro, abri-o e saquei do fundo do lugar do morto uma pasta, voltei a trancar as portas e atravessei a rua, algo escavacada naquela parte, para voltar a pensar na persona que se me tinha atravessado e sequer me tinha reconhecido. Agradeci ao progresso, ter os óculos de sol no rosto e o tempo ter-me cruzado, deixando-me aqui e ali, marcas da sua passagem.
Eis quando me deparo com o número no waze, da direção pretendida e ali estava o agente imobiliário que, na década de noventa e seis tinha pompa e arrogância e acreditava que o mundo talvez tivesse o seu nome como proprietário. Um enorme rei na barriga, e os impérios estavam ao preço da morte. No meu caso, saiu-me a pouca sorte. O agente do imóvel que, ainda que não o tivesse visto, sabia que não me serviria, de todo.
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