Taberna de Amarante & a crise da habitação
Desci até à Batalha, voltei a subir até São Lázaro, ali mesmo perto do jardim, encerrado, para não ser pisado, aquela praça, desde o Guedes ao Santiago, um grande largo de poetas e esplanadas, o pingo doce para pagar contas, os atm's todos para turistas, alfarrabistas fechados, a febre dos Bangladesh, que ainda anteontem fui quase assaltada, levaram-me o tabaco, fiquei com o isqueiro, ele a gritar isqueiro e eu a gritar com ele polícia POLÍCIA, se me tocas, esfrangalho-te todo! E ele atravessou a rua, e voltou a tentar nova abordagem, já me disseram: aqui na baixa, a senhora compre gás pimenta ou um taser, e vai ver que dá cabo de um, mas de dois ou três, pela sua saúde, não ande sozinha aqui, mas, dizia eu: - sempre fui daqui, que eu sou de Paranhos, esta cidade também é minha, mas a violência está por vizinha, pelo mundo todo que é este bairro. De costas voltadas para as zonas de guerra, onde as bombas e os obuses mutilam gente igual a nós, que não vemos da nossa casa, ali na Ucrânia, ali em Gaza.
A fome apertou, e em São Lázaro não se passa fome. Ao invés do Guedes (que já nem o Guedes lá está), optei pelo vizinho do lado e foi melhor que o esperado, este resultado. Um prego no prato e um panaché. Na Taberna de Amarante, digo-vos em desafio, que é tudo malta brasileira, come-se melhor que em muitos restaurantes portuenses ou portugueses. Bife de primeira, batatas fritas, e não me digam que não tem arte, tem arte, comer batatas fritas enxutas, sem óleo, a saberem a batatas fritas da minha avó Albina. Uma salada simples e pouco temperada, uns tomates cherry deliciosos e o panaché como há muito não bebia. Soube-me pela vida, na esplanada, no meio de gente bonita e agitada, sem medo de ser assaltada, o sol a bater-me nos óculos e eu a sentir-me segura e do Porto. O mundo é a minha casa mas, dentro de mim, ainda mora todo o regionalismo típico da cidade que me viu nascer, os cheiros, os pregões, as cantigas, os refrões, a ginjinha e os morcões, que somos todos porreiros, este povo que se ergue assim que o sol nasce, engole um queque de cenoura e um café escuro, sem açúcar, puro, como o céu virgem de junho, cheio de Verão e promessas e vai às escuras, e sai às avessas, subir a parte vazia da cidade e quase é assaltada em pleno dia e fica-se na saudade e na falta de alegria, que um dia esta cidade foi segura, a invicta sempre hospitaleira, mas já não é Porto, já não tem mordomias para as suas gentes nativas, já é poiso do mundo alheio e não salvaguarda o meio, que se torna frio e rude, e, eu, antes que o sol desça sobre mim num ocaso de se pôr no horizonte, ponho-me a monte, não vá repetir a dose, sem gás pimenta, sem taser, numa overdose de medo que é estar-se em casa mas nela existir uma parte desconhecida que nos retira o tapete, que nos violenta a alma e nos deixa frágeis, sem vontade nenhuma de subir e descer avenidas, de admirar as suas histórias, comprometida pelo olhar que reconheci de há muitos anos, no metro de Lisboa, a solidão não me era familiar mas o olhar frio de tubarão é sinal de ausência de afetos, na multiplicação de dialetos, todo o cuidado é pouco. Somos só e apenas pessoas, a tentar sobreviver numa terra cheia de matizes, de gaiatos e de vernizes, conviver com o perigo, o desacato e eu, que já vislumbro os Santos Populares, raia-me a farda de treino ao sangue, que ainda vou conseguir arrendar uma habitação em Portugal, mas não há-de ser nesta cidade, por certo. E acabaram de me ligar. Proposta de Braga. Que não chamam branqueamento de capitais a quem vende imóveis e sem quererem ofender, mas já o fazendo, não se querem comprometer e, de preferência, não registar nas finanças, que é tudo avenças e medranças. Dizia-me a Rita, simpática, que é tudo ignorância e politiquices de quem tudo pode, tudo faz. O meu bisavô é de Braga. Pode ser que seja ele a arranjar-me habitação na cidade onde se fez comendador. Que pode ser ou não, mas lá que não é o Porto, tem noites brancas e dias de São. João. Só não tem praia nem filhos. Com cinquenta e seis anos, tenho que ser prática, é tudo uma questão de matemática. Vão comer à taberna de Amarante e confirmem se vos engano. Um belo prego servido no Largo, a perder de vista o Porto inteiro no horizonte. Já só me falta a Ribeira. Resolvo isso agora com os Jafumega. Depois, então, ponho-me a monte.
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