Até já, Tio Zé
Ele partiu antes de ontem, devagarinho, mas já ansioso, que aquele sofrimento era desumano. Depois dela ter partido, ele empurrou o tempo, primeiro com a barriga, e até com um certo alívio perante a surpresa de os dias continuarem sem ela, estupefacto porque a vida se atrevera a continuar, sem ela a passar a ferro bem cedo nas madrugadas, nem um vinco nos lençóis, as camisas passadas com arte e até as calças dele, vincadas no meio, como era hábito, enquanto ele ia e vinha dos caminhos de ferro, enquanto cozinhava para a família, casa cheia, primeiro um filho e depois outro, cresciam enquanto se mudava a água aos tremoços, a marquise impecável, o jardim cuidado, voltar para casa quando ela estava cheia era voltar inteiro, sem doenças nem agraves, a vida, assim, acontecendo. Às vezes, chegava e ela lia um livro, estendida na cama ou sentava na poltrona, às vezes, era a luz convidativa do abajur e o seu corpo adormecido e o seu semblante tranquilo, outras, as dores dela, o coração fraco dela que teimava em não dar descanso, mas tinha sido feliz com ela, e a vida mostrara-lhe que continuava sem ela, ela que se esfumara entre idas e vindas do hospital, no final do tempo, entre a visita dos filhos e os netos que a acompanhavam e a ajudavam. Ele também. E com a reforma, tinha vindo a expiação e os excessos no tabaco e às vezes no álcool, que uma dor nunca deve adormecer connosco, não podemos estar sóbrios nela, antes mergulhados e anestesiados. Assim fora, o continuar da vida nele, quando ela partiu, uma anestesia intercalada por momentos de sobriedade e de preocupação. Depois empurrou a dor com as mãos e com os dedos, suprimindo no peito o soluço sempre pronto a esgaçar, aflito. Os netos davam motivos para ele sorrir e sorriu. Aparavam-lhe o bigode, brincavam com os seus impropérios e riam das suas anedotas e histórias e, por fim, ajeitavam-lhe as mantas na cama, no sofá. O tio foi, mas levou os netos no coração para o guiar na imensidão da viagem, como uma bússola até ela, com coordenadas de sorrisos que lhe davam.
Nunca me esqueci da partida do meu pai, nunca, nem dos momentos subsequentes a essa partida sem aviso, a família aos magotes, os risos das crianças e os gritos dos adultos, o exaspero gritado num silêncio esmagador de não chocar as expectativas de sonho dos miúdos, que a morte de tão violenta, se fosse calada, se fosse silenciada, o choro silenciado, talvez nem dessem por nada, um suspiro e muitos lenços de mão molhados, atirados ao cesto, uma chuva que cai destemperada e sabe a sal, como as lágrimas que caem distraídas, mesmo quando escondemos a dor, ocultamos o cadáver, quando fechamos os olhos e vemos ainda aquele corpo de vida com vida de sobra, nunca esquecemos os olhares perdidos, sem direções particulares e sempre rumo ao vago, amargo da perda. Podia ter esquecido, era tão mais suportável. Mas não. Quis Deus em mim que me lembrasse de tudo e na morte dele, ainda estou certa de que o Sol de Primavera despejava os últimos raios sobre nós e ele, o tio Zé Maria pegou-nos pelas mãos, o Ruizinho a dormir no berço sob o olhar das tias e com os gritos da mãe, o avô Rodrigo, o tio Mingos socando os móveis, desesperado, e, então, o tio Zé que partiu ontem, pegou-nos pelas mãos pequenas, que os soluços eram insuportáveis por estarem tão cheios de revolta e levou-nos pela rua fora até à viela da Zelda, a sua mãe, a tintureira que acolhia a todos com um sorriso, um biscoito ou caramelo, uma bolinha de sorrisos e, ele sentou-nos no muro defronte da casa dela e começou a contar-nos uma história de morte, mas uma morte bonita e digna, a morte que ele queria que aceitássemos de uma forma ligeira. Mas, como se fala de morte, enfeitando-a de flores e magia?
Ele sabia desmontar os mais difíceis imbróglios, com detalhes ricos de superação e conforto, onde o abandono e a sensação de orfandade nem sequer eram contemplados. E sorria, num rosto de dois olhos meigos e um bigode enorme. Ele conhecia os duendes da floresta e sabia do ninho dos pássaros, talvez por ser de estatura pequena, ele conhecia todas as clareiras na natureza e atrevia-se a semear anedotas, à semelhança do avô Rodrigo, tinha sempre alguma charada para contar, divertindo os tristes das suas aflições. Lembro-me bem dele. Dos outros adultos, não, a não ser do histerismo e da revolta no olhar e na boca dos que com o pai Francisco privavam. Ele privara muito com ele e lutava, com a história que inventava para mim e para o Antero, para afastar as suas próprias lágrimas da surpresa da partida de um amigo. Hoje vai subir ao céu, depois do seu corpo ficar ali, ao lado dela. Dela e da mãe, dos pais dela. Ali, naquela última morada onde só moram restos de nada do que foram. E eles foram inteiros e continuam, só não vemos as suas almas que depois das partidas feitas, das despedidas e dos choros, dos sussurros sobre o seu estado anterior e da aceitação de fim, dos comentários inoportunos, onde se coloca a dor, no bolso ou na glote, da reunião e da cerimónia fúnebre, se irão desunir, cada qual rumando um tempo e um espaço diferente, reunindo as memórias que persistem e, porventura, será no coração dos netos que perpetuarão mais as suas brincadeiras e sorrisos. Não é a vida que se finda, é a morte que nunca se tarda, que vem sempre na hora certa trazer, por fim, aquela carta que, como ouvi noutra partida a um pastor dizer, a famigerada carta, sempre lacrada, da parteira ao coveiro. E a terra sempre será o material que cobre tudo, que fertiliza a dor em saudade, mas não permite ao esquecimento de alma nenhuma.
A alma não morre, parte, finalmente, de regresso à sua morada infinita, chegando a casa e nunca sabemos quando chega a casa, mas se estivermos atentos aos sinais, às vezes é um pássaro, uma borboleta na estação da primavera, uma flor que brota sem que tenhamos colocado semente que nos vem dizer que afinal, aquele tio de bigode e com memória de clareiras em bosques e de comboios que partem ao sopro do apito que agora foi substituído pela gravação da senhora simpática que fala mas não ouve, podemos sentir uma brisa, quiçá o perfume dele sobre a nossa solidão, sobre a vida que ainda nos sobra e nos faz acreditar que está bem e não foi nada em vão. Está numa janela do céu, com a tia, a ver os novelos da vida dos netos a virarem camisolas e casacos, a passarem a ferro com mestria, os sonhos dos filhos que terão.
Ainda na semana passada, na ida ao hospital da Trofa em Ermesinde, a Eva me perguntou como estaria o tio Zé Maria, desde a última vez que fomos visitá-lo e ele já estava de cama. - Mãe, o tio está bem. Não se melhora fisicamente, depois de uma certa idade, depois de um tempo onde o contabilista é que dá ordens supremas. Mãe, o tio vai melhorar. E assim foi. O tio partiu, mas ficou à sua maneira e quando chegar ao país dele no céu, vai encontrar a tia com um abajur de estrelas, quiçá sentada na poltrona de uma nuvem de cristal, à espera dele, para uma reunião de alegria. Ele foi, na sua viagem, mas o que partiu dele foi a dor física e agora, já não lhe vejo o bigode, mas ao sorriso, sim. E continua igual ao sorriso da infância onde ele, sem nem saber como, deu colo à nossa dor, tentando distraí-la do nosso foco, para que pudéssemos continuar a ser crianças, sem o peso da orfandade que é significativo e impeditivo para medrar sonhos. Ele não sabia, mas hoje já sabe, porque nunca lho disse, mas hoje sim, que eu vi as clareiras que ele me mostrou, os ninhos de pássaros e até vi os comboios a vapor que abriam caminho por entre o céu. Boa viagem, tio. Hoje dou um bagaço à minha mãe após almoço e não lhe digo nada que o tio partiu.
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