Emboscada afetiva




É territorial, o ser. Por isso, quando dizemos que determinado lugar é nosso, significa que estamos presos a ele, que sem ele somos menos nós e mais ilhas figurativas. Os afetos governam as motivações, sejam negativos ou positivos. Partir ou ficar, que me prende ao lugar?

E eu cristalizo-me em árvore, a mesma velha e estéril árvore que dá sombra à nossa entrada, ladeada de arbustos e margaridas que nascem ao calha. E por essas escadas antigas, por onde subimos ao que um dia chamamos céu, quando a mãe era viva e insubstituível, que ora galgadas de duas em duas, ora ascendidas lentamente, por elas me fico aguardando o tempo de secar mágoas ou de partir. Não sei partir sem que o puzzle esteja pronto. Há-de haver um sinal dado pra que tal aconteça, venha ele da janela baixada para o quintal, da nesga de luz da porta do grande hall de entrada ou até da chaminé que, largando fumo cinza em baforadas de comboio, me advertirá que todos, todos fomos substituídos. Que não há mais fantasmas pendentes. Serei a última a usar o nome de família, a riscar, como a velha árvore de tília, a existência deste lugar que foi nosso. Sei que morri, mas ainda me faltam os cabelos pendendo num laço velho a que me habituei, a boca caída, desconhecendo sorrisos de infância, por lhes ter perdido hábitos. Os olhos sem brilho, morrentes e apagados, esquecidos há muito do viço da esperança. A alma acesa e branca indicativa de vida que já não tenho. Não posso. Hei-de ver este cão sarnento e feio a mordiscar-me o tornozelo e revirando-se até ao rabo abanador, envolto, sem que ninguém o entenda e me veja. Ou a ninhada de gatos remelentos que faz ninho debaixo da tilia velha, ronronado miares e pesares que não são meus. Acoito de tilia pode durar eternidades! Ah que não serão as mesmas eternidades do céu, pois não. Despedi-me de ti, ainda viva. Certa de que me morrias. Incerta da minha própria morte. E agora, também eu, cadáver sem corpo, hostilizo-me. Que te devia ter abraçado bem mais, mordendo-te os lábios como se saboreasse papaias e me prendesses nos teus fios de fruto. E te abraçasse com todos os dedos e pontas de membros fincados, não te permitindo partir de mim. Estarias tu vivo, ainda? E se jazes morto, mais morto que eu, onde vagueias que não te encontro, nem nas escadas nem nos ermos onde me deixo arrastar pelos ventos, onde andam vivos e idos, juntos na tristeza das estações. Estações sem paragem, como barcos sem mar. Só lhes vejo ida sem volta. Nada tem volta, ultimamente. E eu que pensei que morrendo, renascia. E sinto-me morrer dentro do tédio de ter braços sem te abraçar, de ter olhos sem te ver. Prendi-me a esta velha tília que sabe mais de mim que eu própria. Dos sabugos que me urdiam a ponta dos dedos, junto às unhas e me causavam dores que eu abafava com os dentes; ai que limpou os teus cravos com as folhas, 32 tinhas tu que os contei. Meu amor, ainda me lembro que amar era fácil, palavra fácil que digeria nos teus lábios, nessa língua húmida e doce, na tua boca quente e mentolada, no teu colo árido e raro. Sem tempo ficámos. Proibidos de amar. E Deus, o teu Deus roubou-te sem avisos, sem telegramas e sem flores. Roubou-nos a tua identidade rumo à morte a que eras avesso. Morreste. Até tu te deixaste vencer por ambos. E eu que era sempre a mais frágil na boca deles, fiquei sentada em cima dos séculos, recusando-me ao luto, ao teu luto. Ainda hoje não o fiz. Idiota, diz-me o meu inconsciente. O luto acontece quando o outro que nos morre desaparece, sem deixar rasto. Deixando todas as suas coisas entregues aos vivos. Mas não o teu, meu amor. Se o teu devotado Deus me tivesse avisado que partirias tão depressa e tão longe, juro que já me teria deixado ir, nessa luz de transporte. Mas, por mais que o diga a mim, o que esse Divino ser falhou sobre a tua partida, de alguma forma, o limbo dos momentos bons não me permite a retirada. Encalhei entre dois estados e nenhum deles me conduz a coisa nenhuma. Esta espera, de onde vejo escadas e sombras e chuvas, onde se abrigam gatos e cães e onde me concedo o canto das aves é o interregno comprido da não aceitação. E a vida torna-se num azedume de segundos continuados, com máscara de realidade. Enquanto não vir subir gente, gente viva a estas escadas que são minhas ainda, fico-me tentacular, entre um pensamento e outro, onde a minha verdade se tornou na irrealidade de tudo. Encalhei.

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