Deste defeito de ser humana vs Modernidade Líquida
Enterneciam-me os humanos. E o meu estudo exaustivo sobre eles é, antes de mais, uma ainda-ternura, que me torna demasiado estranha, até para mim. Em criança, já era assim. Vasculhava nos olhares e gestos, reminiscências de outras vidas, ou então desta, o que ocultavam da maioria, o privado assombro de vida e sonhos em cada qual. Dava por mim a ensaiar a possibilidade do que lhes via e permanecia escondido. Hoje que me conheço, sei que os olhava como olho dentro de mim, que os entendia como entendo o irrevelado em mim.
Não é que perdoe infinitamente. Que compreenda tudo no imediato - porque no imediato consta a análise superficial - mas esta natureza implícita de exercitar o lugar do outro, de que me aproprio, nestas aproximações, claramente, me dão chão para entender esta natureza de ser-se humano. Não haveria senão, não fosse entender os outros, esquecendo-me de mim. E nisso também fui boa, toda a vida. Primeiro os outros, não porque me exigia tal, nunca foi assim. Ou seja, nunca houve premeditação de me tornar secundária ou a segunda pele no entendimento dos outros. Nem a apropriação era premeditada. Acontecia naturalmente. Já não permito que aconteça, ainda, porque mo proibi. Primeiro eu. Em segunda análise, ainda me obrigo a outro olhar sobre mim, antes do outro. O que é bom para mim sobre a aproximação a eles? E há algumas raras exceções, que aqui não são contempladas, mas não sei se isto se perpetuará no tempo da minha existência. Os meus filhos são ainda a tónica de exclusividade. Primeiro eles. Temos que nos educar, reparando o errado em nós. É obrigatório. Até mais do que ser empático. Porque é partindo de mim que olho o outro. A ternura mantém-se. Agora não permito que venha inata. Agora, exijo de mim a avaliação e a sucessiva seleção.
É recente. As dores ensinam-nos os caminhos, primeiro na pele, no coração e depois extravasa-nos, para o exterior, tal como as rugas, as cicatrizes. A ternura não é apego, e por ser inata, tem de ser desaprendida, para uma análise imparcial. Assim, deste exercício, tive que desconstruir, também, a empatia. Sou empática, sem reservas, com os outros reinos. Deixei de o ser com o meu próximo. Faço abordagens constantes, vou dentro e volto fora, volto muitas vezes dentro. Isso aprendi a custo, convosco e devo-o a vós, aos que me magoaram, os que se aproveitaram da generosidade sem limites, da entrega sem ponderação. Porque sou intensa, entregue e devota. Demasiado humana. Desde quando isso passou a ser defeito? Era. Lá está, a retificação tem de vir, para poder afirmar: isto eu aprendi de vós.
É como reescrever um texto, antes e depois de conhecer o personagem, antes e depois de viver o personagem. Antes e depois de tudo. Assim se parte para o reconhecimento de nós mesmos. O espelho, o olhar dentro, o procurar, o apagar, o transformar. A reavaliação nunca se esgota. Não perdi a generosidade. Passei a ser seletiva. Como me custou isso! De desaprender o amor incondicional. E sei que, se não estiver atenta, volto à velha pele, ao formato original, ao defeito. A atenção é muito importante, o foco constante. Lembrar-me que o humano em grupo é como as hienas. Daí o des-aprender o amor. Se fosse fácil, não se escreveriam tantos livros sobre o sofrimento humano e animal. E tal como no amor, assim é em todas as matérias. Quando falhamos, quando sofremos, quando somos castigados ou nos castigamos a nós mesmos, é mais fácil não esquecermos da desumanidade.
Depois de crescer, a ternura cresceu comigo, não permaneceu do meu tamanho original, foi abrindo valas, à medida da expansão do universo de pessoas que conhecia. A ternura é um oceano imenso, marés sempre cheias e prados sempre férteis, florestas sem fim. Vulcões e tempestades concomitantes. E quando se expande a humanidade em nós, expande tudo na mesma medida.
E se pensarem bem, este estado de ser é natural, a expansão é a forma mais simples de aprofundamento humano. Destruir a humanidade em nós é antinatura. Viemos ser e experienciar a expansão, por sermos multidimensionais. Biopsicossociais. Ou seríamos ilhas ou estreitos. Ou pedras. Assim, o que o conhecimento dos humanos me propôs, ao fim de cinquenta e cinco anos de existência foi o pior dos exercícios de que tenho memória ou conhecimento, enquanto humana. Medir o amor, medir a qualidade e as intenções dos seres humanos. Onde anda a vossa humanidade? De que sois feitos? Onde escondestes a vossa verdade, a vossa essência, centelha divina? Porque quereis diminuir o que sois? Que detrimento é esse de permitirdes seres humanos a procurar diminuir a sua humanidade? Não conseguis ver que caminhais no avesso da luz, da verdade e da própria essência?
Assim é.
Tantas foram as vezes em que perguntei aos seres iguais a mim que recorreram aos meus serviços, quer como psicóloga, quer como docente, quer como amiga, qual era o objetivo primário de cada um? O que era que vos acendia uma chama dentro? Quais paixões trazíeis dentro que vos era necessário esconder dos outros? Porque, meus queridos semelhantes, amigos e estranhos, são as paixões os talentos e os dons que vos foram atribuídos para engrandecer a vossa estadia temporária por cá. Tudo o resto é aprendizagem. Os vossos talentos são inatos, os adquiridos são só coisas mais temporárias que eles.
A bussola interna é o que nos queima a alma, que nos anima a sermos melhores, autênticos! Produzimos doenças físicas, mentais, comportamentais, afetivas e outras que tais, quando nos permitimos - e devia ser proibido - ocultar a nossa verdade. Virá o tempo - para mim já o é há muito - de vingar a telepatia, a brutalidade da verdade de cada um no todo! Está na hora de sermos autênticos connosco e com os outros. Não somos iguais, somos da mesma substância. Mas é a nossa diferença que cria a diversidade e isso é complemento e não detrimento. A inteligência artificial, como tudo, traz ganhos e perdas à humanidade. Não viemos para ser computadores, nem para perdermos a nossa identidade. A globalização mais não é do que a tentativa de colonização e expropriação do ser único e, se perdemos a originalidade, perdemo-nos da humanidade. Não viemos aqui a esta vida para somarmos em quantidade. Nem para desaprender valores que nos tornam únicos. A inversão de valores é a total perda de identidade. O medo é o avesso do amor. Que construímos nós com o medo, senão prisões e hospícios?
Ouvi várias vezes diversos pensadores falarem sobre a massificação do materialismo, que ganha adeptos todos os dias, a cada segundo. A nossa pegada ecológica destrói o ambiente e esse exercício de pensar o capitalismo está demodé. Afinal, os mass media, um dos poderes que poderia ajudar a reverter esta inversão de valores, passou para o comodismo, se não os podes vencer, junta-te a eles e assim continua. Quem vai mudar as sociedades, senão os indivíduos? Esperam dos políticos o impossível. Atribuam o vosso poder a um e ele vos destruirá. Vivemos num mundo líquido, de relações líquidas, de materiais com prazo de validade curto. Um dia, sereis escravos do poder dado. Sim, já somos, mas seremos agrilhoados, penalizados por pensar, por exercer a cidadania, e falo especificamente deste país, à beira-mar plantado, que não questiona, não põe em causa e aceita tudo de bom grado, dando-se a generalização e a psicologização do senso comum. Tudo serve para nos distrair. O foco não é o bem comum, mas o que cada um tem, o ter mais que, o ser mais que, perdendo-se o objetivo transformador e a causa em si mesma.
Todas as guerras são escandalosas e têm um impacto aterrador no todo, porém, quantos de vós já esqueceu, não só as várias guerras que ocorrem há anos, sem pausa, como os vulcões, como os grandes grupos económicos que governam o mundo e vendem marcas e produtos irrelevantes, como as perdas humanas no mediterrâneo, tudo mediático e tudo superficial. A ponto de nos perguntarmos hoje se somos humanos ou se um dia nos esquecemos de ser?!
O mundo gira como um enorme carrocel de romaria, onde se apascentam egos e folclores de mau gosto, big brothers e circos de violência e acatamos tudo, aceitamos tudo e rimos das nossas próprias desgraças, do brexit, do défice, dos impostos, do período de nojo, das eleições, das convulsões, dos covid's e dos ufos, dos tecnocratas, dos serial killers e dos produtores de cereais, da bajulação e das cunhas, dos mcchicken e dos mcdonalds, da perda de identidade de um país e do preço do bacalhau, da inflação e da bolsa, dos bancos maus e dos bons ladrões, dos mecanismos de coping e das estratégias torpes, dos furacões, dos vulcões e das férias nos resorts, do capitalismo e das ditaduras e, generalizamos tudo, como se tudo fosse mais do mesmo e estivéssemos todos aptos a abdicar da liberdade em troca de uma segurança engenhosa e computacional, controladora e ordinária, como se viver fosse algo fácil, barato e desse milhões! Futuristas e superficiais, para onde correis vós? Que pretendeis mudar mais? Que nos restará mais abdicar para nos transformarmos nós também em produtos consumíveis e ocos, oscilando entre procura e oferta, descartáveis para um primeiro emprego, mas nunca descartáveis para a escravidão? Que mais vos ocorre, depois do futebol e das putas e do vinho verde, que há depois dos bares, dos concertos e das multidões vazias, sem qualquer identificação causal? que mais há, depois de sermos apenas o que temos, o que comemos, o que bebemos, senão massa ordinária e desclassificada? que haverá ainda de humano em nós que deusificamos o convencional, a marca, a coisa?
Que mais coisas quereis ter e ser?
Zygmunt Bauman precisava nascer outra vez, quem sabe, para nos ensinar uma forma de voltarmos a ser humanos outra vez, a substituirmos a ilusão pela realidade da nossa essência e a substituirmos o medo pelo amor ao próximo.
Pergunto-me que mais haverá numa sociedade de sujeitos que dispensam predicados e se entretêm numa cela, voluntariamente, dispostos a esgrimir coisas, mas não causas?
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