Quero uma árvore de magnólias no amanhã do meu pequeno-almoço
Os dias são momentos fugazes, que ocorrem sem permissão e sem necessidade de avisos. Uns atrás dos outros, marcados no calendário, obedecendo ao seu devir, porvir, acontecendo entre a chegada do sol e o poisar da lua, nas cidades, nos bairros, nas ruas, vão se revertendo no tempo que cessa as expectativas, noutros ayers. Desconfio que a última esperança de um inocente se parta entre um ontem e um amanhã que o tempo se esquece de promover. Era de noite e todos os caminhos se abriram como magnólias ao luar, um stabat matter a acompanhar a música de fundo, no fundo dos seus olhos rasos de água. Um melro beberica na paisagem, um homem vira as costas ao futuro. E ficamos todos estancados numa via de mão dupla. Só as uvas passas, as nozes e as filhoses cabem na mesa de ontem à noite, o meu copo despido de licores, a veneziana aberta para uma noite funda de estrelas e a luz da manhã a cumprir os ciclos, onde deixaste tu essa esperança cor de magnólia aberta, o cigarro enviando sinais a uma nave etérea que aguarda, o sonho coberto por uma manta de penas, que as penas se não se cobrirem, desatam a abrir feridas antigas. Era uma noite, como todas as noites anteriores, onde cabia tudo o que a mesa comportava. Um senão ficara no cinzeiro já despido das suas cinzas. Era um senão. Havia sido esse não que se dera, embora não fosse explícito nem viesse em parangonas. Os semáforos fechados para o trânsito, apresentando as vias duplas ocupadas por outros interlocutores. No seu bolso, lenços amassados e brancos, como folhas rasgadas, cheias de caracteres e segredos inviolados. O tempo permitia tudo, até um vislumbre do amanhã que se quedara. Ali, na escolha, entre ontem e amanhã, colavam-se outros nãos que iria converter em dúvidas. Um momento sequestrado para um olhar insistente e fixo na moldura, só as magnólias resistiam abertas e inocentes à noite escura. E abriam perfumes e promessas realizáveis. Um rasto de estrelas no cabelo, um meio-sorriso habituado ao tremor de frio entre a manta de penas e a sua pele, os seus olhos rasos de água e um licor entornado, uma colher de mel para os anjos. Não se retiram as toalhas de Natal enquanto eles rodeiam os últimos pingos da festividade, alegres e descalços. As brincadeiras partiam com as migalhas de pessoas que se alojavam entre a retina e o pausar de cílios. Quero uma árvore de magnólias na minha varanda de pequeno-almoço. Provar as folhas carnudas repletas de hieróglifos incontestados da humanidade.
Ouso permitir-lhe a introspeção, o branco é condescendente. É o bater de portas, o desfecho final que urgia e que vinha agora, como uma porta pesada, com batente milenar e um punho cerrado, ecoando o grand finale, c'est finis, it's over. Sorriso a meia haste, olhar pendurado na carne e o aroma do poema do futuro na mesa do café, sempre se celebra o ontem entre paredes e portas fechadas. Que não haja vento a provocar vendavais nos sentimentos que ele esconde, entre uma página do passado e a outra que terá de ser impressa num cubículo ancorado do futuro. Desse tempo apenas expectado que ninguém sabe que existe, se vai existir, uma gárgula emoldurada, uma foto que vai gastando os seus raios no sorriso dele, que só a sua alma saiba como se sente! Os papéis não são lícitos, servem para firmar contratos, mas não para convocarem o concílio de Deuses. Eles, lá no Olimpo, permanecerão a enxugar as lágrimas que ocorrem na sua face. Emitindo letras de câmbio pelos sorrisos que deseja ter para os demais. Os apegos, as janelas, os cortinados, o chá, tudo aquietado na madrugada do olvido. Um pássaro noitibó que arredondilha a lírica dos fás sustenidos, um verso que se apruma para a apoteose final e, sem grandes compositores externos, surge o vaga lume, com a sua bioluminescência aterra entre o copo vazio e o lar do olvido que ele grita para que se não oiça. Do outro lado do rio, um corpo deslisa a água, não se fazem ondas violentas. Tudo vem até si num descontinuar lento, uma valsa poética, uma voz firme de silêncio. Nem uma só palavra, sequer uma sílaba se oiça daquela boca que se mantém no hoje. Caem folhas secas, perpetuando e empurrando a estação para a sua hibernação total. Quisera ser como a crisálida, sem bulícios e nem entornos, nem presentes e nem agoras. Somente a promessa de amanhã, quando tudo se romper novamente em segundos e minutos e horas, correndo para a rebentação da espuma. Um relógio solar na pedra de outras eras. Ele era crisálida, um urso hibernado, um sopro contido na glote. Era uma madrugada que acordava todas as madrugadas anteriores, que chamavam o sono de mentira, era mentira e era de noite e era de dia, esta madrugada cheia de porquês e porque nãos, todos os nãos naquele senão abafado. Ontem gritaste, hoje nem um soluço. Ontem a dor e hoje a cicatriz, ontem eras tu e hoje continuas tu, mantendo-te ancorado nesse vazio de palavras, num sussurro omitido, escamoteado, açoitado pela razão. Shiu shiu shiu, o tempo ouve as nossas preces, o tempo, esse entrepeneur que se dedica aos malabarismos de divertir os cérebros e de pesar os corações. Shiu, nem mais uma crisálida estanca o que o devir há-de trazer. Não vejo, não vês, mais eis que vem, arrumando e classificando as vírgulas e os pontos nos i's que não queremos ver. Guarda na estante, não retifiques nada, guarda e shiu. Quando o mordomo dos séculos chegar, no seu aventalzinho maçónico, gargalharás e eu pedirei água fervida porque a magnólia cairá na chávena, as suas carnes quentes derreterão as paredes de porcelana, a asa delta que segura os meus dedos e eu, de fininho, entrarei na casa do teu silêncio, o líquido fervente, a ausência do beijo dos teus lábios mordendo o bordo da serviente, enquanto vês as nuvens distanciarem-se para fora do horizonte, a linha severa do cadeirão e do gradil, a minha mão pousada nesta época mas os meus braços suspensos nos teus ombros, no teu sorriso que continua meio e a meia haste. Os enigmas acontecem mesmo quando o frio desce e se prende nas paredes da pedra, ensimesmando musgo, nos sintéticos instantes em que te vejo rodar a cabeça e o teu perfil me sustém a madrugada. O gato espreita a vitrine e a chaleira grita, acordando os silêncios que manténs castrados, fechados em ti, tu que és o nome de todas as coisas, que vens dos augúrios de alguns fait divers, que enclausuras os desgostos e as agonias em crisálides argumentos kafkianos. Um dia, atravessaste a minha praia e o oceano denunciou-te, as pedras misturaram-se às algas e às dunas de outros amanheceres em que não necessitavas guardar os silêncios na glote ou nas algibeiras da vida, ou nos clássicos cálices da magnólia. Os sonhos medram mesmo quando calados. Sonhos crisálides. A minha vida dispunha-se como num labirinto ordeiro, onde sabes o caminho dos sonhos, onde guardas o cordel entre os dedos, já presos e marcados pela força de os esconder.
Retiro-me de cena, invento palavras que contornam esquinas, os meus sonhos são novelos que desenham caminhos entre o teu olhar poisado na paisagem e as ondas do teu cabelo, ou a curva dos teus ombros para que os meus braços possam se encaixar. São areias movediças, porém, assim é com o barro que te esculpe o amanhã que tentas encerrar num ontem longínquo, cumprindo as medidas do longe no estancamento. Shiu shiu, aquieta a mente, agiliza o relógio e nem tentes barrar o que tem de ser. E que os ontens que não se cumpriram ou se cumpriram erroneamente, estilizem o amanhã dessa forma negada. Obténs alforria de ti.
A chaleira já não retém mais nenhum grito e o corpo da magnólia encontra a água fervente e se mistura, se compõe noutra forma de ser. Eu mastigo as pétalas da dor com o aroma da magnólia. Tu olhas-me de soslaio com receio que a minha presença gritante te obrigue a sair da posição de ermitão. Tu cresces na chávena, os teus pensamentos volatizam conteúdos que deixaste por expressar e não tens mais mão ou pé na tempestade que ameaça ruir com os teus silêncios. Precisas de um chão onde vomitar-te, separar o trigo do joio, como a crisálida mescla do teu sonho precisa de casulo, como a magnólia precisa da terra e da chuva, do sol e da lua para temperar o que vai colher depois. Depois, todas as varandas serão a poente de nós, mas na nossa brilhará como uma estrela, essa árvore de magnólias deitada no mar do teu alvoroço. Permitirás, então, o sair do casulo, o anular das contenções e manifestações ocultas, aprenderás primeiro o sussurro que engasgaste na glote do tempo, depois, depois de depois, aprenderás a dizer eu sou outro, e eu vim ser esse outro que estive a guardar, não sou deste tempo, não sou daqui, mas manifesto as asas, rompendo cadeados, do ruminar ao esbracejar, nadando para o leste da minha vida, aprenderei o grito que se alberga entre a garganta e as costelas, ficarei em carne viva. Depois, dirás, depois, a minha varanda guarda ainda todos os momentos em que rompeste, dirás, rompeste os limites de mim, dentro de mim, eu sou esse que conheces por inteiro, esse que desabrocha o inverno de todos os invernos guardados, destruindo tudo o que me esconde e que é meu e que é para ser vivido. Talvez uma varanda possa definir todas as varandas, procuro desenhar as varandas do mundo naquela que desenho pra ti. Uma varanda com vista para o mar, se vestindo de alpendre e flores rasteiras, uma varanda coroada de vasos com sementes, onde se ajeitam os sonhos que quero que medrem. Dois lances de escada para um quinteiro, onde vão desabrochando magnólias brancas, onde o sol tingirá de malícia o pequeno-almoço que quero tomar contigo, dirás, depois de uma noite sem lusco-fusco, sem vaga lumes ou ocasos. Onde depositarei as pétalas desta flor na tua chávena para que possas beber o amanhã comigo. Comigo, dirás. E comigo és tu com tudo isso que és tu, com os teus sonhos medrados de sol, com as tuas conjeturas contempladas, onde o senão passa a ser uma intermitência pendurada entre o teu sorriso que se rasga à meia haste e se coloca inteiro na fruta e nas torradas, no café e no futuro. É desses pequenos-almoços que o mundo triunfará, o meu mundo, direi. E tu não dirás mais nada. Sentado na varanda, entre glicínias e amores-perfeitos, deixarás os medos de ontem no contentor da cozinha, para a chaminé e a extração de fumos levar o que ficou ainda dos dias maus. O mar enternecerá os teus cabelos, alvoraçando os guardanapos que manterás suspensos por debaixo do prato de sobremesa. Meia-lua de meloa, de laranja, de bolacha maria, os teus dedos hábeis à minha volta, o teu sorriso e a tua fala. Não calarás mais nada. Dir-te ei eu, não cales quem és, e Deus que é Deus em ti, suspenderá todas as dúvidas e florirá todas as árvores de magnólia dos jardins, em todos os quadrantes.
Todos ouvirão essa canção, todos cantarão o seu refrão, todos sorrirão porque as bênçãos podem descer à terra numa manhã assim, em que o sol se atreve a arrancar o frio às paredes do labirinto e o cordel amarrado aos teus dedos dissipará infortúnios e angústias, será acompanhado por uma balada sem gemidos nem choro, sem pesadelos e sem glória, a preia mar sobrepor-se à ao gerúndio do mundo. E tu renasces numa manhã de sargaço, sem latifúndios e nem senãos. Nenhuma dúvida turvará a paisagem, talvez dois ou três cúmulos pendurados no céu, o novelo acabou, a obra fica pronta. E na ponta direita da tela, um tronco forte dá textura ao pequeno-almoço, cinco magnólias brancas húmidas da noite anterior atingem o amarelo-dourado que vai se fundir ao azul e verde da paisagem. E depois de edificar a varanda, o galpão completa a tela, duas cadeiras displicentes e dispostas ao redor da mesa, e encostado no gradil o teu corpo hirto e vivo olha o navio que atravessa o mar, enquanto sente as minhas mãos à volta do teu peito, eis que o último senão que eu trazia da eternidade, jaz morto longe da tela, onde ficamos nós, abraçados ao silêncio bendito. E nem mais uma vírgula entristecer o que vem, quem sabe reticências onde caibam as benditas magnólias, o beijo que me deves e o abraço que acontecerá sobre a tela.
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